A bolsa está descolada dos fundamentos da economia?
Depois de atingir o nível mais baixo em 63,5 mil pontos, no dia 23 de março, a Bolsa doméstica começou movimento de recuperação que surpreendeu economistas e analistas. A surpresa veio pela velocidade e aparente consistência da retomada que levou o principal índice da bolsa brasileira ao nível de 97,6 mil pontos no último dia 8 de junho. Em meio às consequências de uma pandemia ainda não controlada, com momentos de forte crise política e queda acentuada do PIB, como avaliar essa recuperação?
A maioria dos economistas e gestores coincidem no alto grau de incerteza que a crise atual confere aos mercados devido à natureza de sua origem. Diferente das crises anteriores, a pandemia é uma causa exógena ao mercado financeiro cujos efeitos ao longo do tempo são desconhecidos. “Não é a nossa especialidade. Claro que fomos buscar apoio em análises de vários institutos nacionais e internacionais, mas ainda persiste uma grande dificuldade de se fazer previsões”, explica Marcelo Toledo, Economista-Chefe da BRAM (Bradesco Asset Management).
Ele aborda a dificuldade de mensurar os impactos e perspectivas da pandemia sobre a economia e as diferenças de uma país para outro e até dentro do mesmo país. “São vários fatores, por exemplo, a testagem em massa, o uso de transporte público, entre outros, que fazem com que os efeitos da COVID-19 sejam diferentes de uma região para outra”, diz Toledo. O que de fato é certo foi o forte impacto negativo sobre a atividade econômica que derrubou em 27% a atividade industrial no mês de abril no Brasil. A queda do PIB no segundo trimestre deve alcançar os 10% negativos, segundo estimativas da BRAM e a taxa de desemprego, ainda que uma parte ainda temporária, deve atingir 20% da PEA.
Os cenários futuros para a economia doméstica também não são alentadores diante do convívio com a pandemia. “Estamos prevendo miniciclos, com momentos de alívio e depois, de apertos, que irão variar nos estados e cidades”, diz o economista. Ele acredita que até o final do ano haverá algum grau de restrição para a circulação, o que deve levar o PIB a uma queda de 6% em 2020. A BRAM chegou a trabalhar com uma previsão de queda de 7%, mas acabou aliviando um pouco do pessimismo ao perceber alguns indicadores que vieram “menos ruins” no mês de abril.
O economista-chefe da JGP Asset Management, Fernando Rocha, compara a crise atual com as anteriores dos
últimos 20 anos, e também destaca a natureza do problema. Evidentemente, na crise atual, o principal fator é a questão sanitária da qual não se conhece exatamente seus efeitos. Na crise de 2001, com a bolha de tecnologia, o FED atuou rapidamente para baixar os juros a 0%, mas logo os mercados se recuperaram. Em 2008, a crise foi mais sistêmica, mas também foi detonada por uma bolha, naquele caso, do mercado de subprime. O pacote de recuperação foi conhecido como QE – Quantitative Easing – e injetou liquidez no mercado através da recompra de títulos americanos.
Apesar da origem da crise distinta em comparação com as anteriores, o enfrentamento da atual passa também pela injeção de uma grande liquidez pelo FED e demais Bancos Centrais ao redor do mundo. Na Europa, e também no Brasil, foram aplicados fortes pacotes fiscais de auxílio aos cidadãos e empresas. E os juros que já estavam em patamares baixos, caíram ainda mais para perto de 0%.
Impactos no Brasil
Os estrangeiros saíram da Bolsa brasileira logo no início da crise, e o patamar máximo de pouco mais de 119,5 mil pontos do dia 23 de janeiro evaporou em poucas semanas, caindo quase pela metade. Se contar com a desvalorização do Real, a queda da Bolsa brasileira foi de algo em torno de 60%, uma das piores performances mundiais. O lado positivo é que os investidores locais, sobretudo, pessoas físicas, não só permaneceram na Bolsa como aumentaram a exposição em abril e maio.
O problema apontado por Fernando Rocha é que o entusiasmo da Bolsa tem sido muito maior que a perspectiva de recuperação da atividade real. É certo que a renda variável costuma antecipar os movimentos de retomada muito antes da economia real, mas a recuperação pode estar além da conta. “Acho que a Bolsa em 97 mil pontos está muito cara. A situação fiscal piorou muito. A recuperação do PIB será bastante lenta. Os preços das ações estão muito descolados”, diz o economista-chefe da JGP.
Ele chega a afirmar que a Bolsa, se continuar nesse ritmo, poderá formar uma nova bolha, que pode estourar novamente daqui alguns meses. Outro problema é que a relação dívida-PIB deve sair de um patamar de 70% e atingir 90% ou mais. “O patamar da dívida pública deu um salto e dificilmente voltará aos níveis anteriores à pandemia”, prevê Rocha.
O economista acha estranho também que a curva das taxas longas de juros esteja tão inclinada. Ele explica que a forte expansão fiscal ao redor do mundo também ocorreu no Brasil, e está dando esse ânimo para a recuperação dos mercados, mas alerta que a crise da pandemia ainda não está equacionada.
A JGP estima uma queda do PIB de 6,5% em 2020 e inflação a 2% (IPCA). A taxa Selic deve estabilizar em 2,25% ao ano e o dólar deve orbitar na casa dos R$ 5,20. Além da pandemia, outro problema que ainda preocupa é a crise política e a dificuldade que será enfrentada no período pós-quarentena para avançar com a agenda de reformas. Com um cenário ainda recessivo, dificilmente a popularidade do governo federal será recuperada para ter força suficiente para avançar com a reforma administrativa, por exemplo, que pressupõe lidar com a força dos servidores públicos.
Apesar de uma análise mais pessimista para 2020, a JGP projeta um crescimento mais forte para o próximo ano, de 5% para o PIB, com o retorno da Selic para 4% a partir do segundo semestre de 2021. O IPCA do ano que vem será de 3,5%. Mas tem alguns fatores que poderão puxar as previsões do PIB para baixo, para 4% ou até 3%.
Posições defensivas
Os fundos da JGP em geral estavam com posições mais defensivas na primeira etapa da crise. “Estávamos de olho na China desde quando surgiram os primeiros casos. Quando começou a contaminar o resto da economia, estávamos mais comprados em dólar, tínhamos travado as NTN-Bs e reduzimos bonds. Por isso, não tivemos um impacto tão forte quanto a média do mercado”, lembra Rocha. Com a volta dos mercados em abril e maio, os gestores da asset venderam uma parte das posições em dólar. Mas decidiram não entrar em Bolsa. “Temos dificuldade de surfar na onda da Bolsa. os preços estão muito esticados e não é de nosso feitio entrar nesses momentos. O risco fica alto e a convicção, baixa”, comenta o economista da JGP.
Perspectivas da BRAM
O economista-chefe da BRAM projeta crescimento para o PIB em 2021 de 3%. A Selic deve chegar a 2,25% na mínima, permanecendo neste patamar até meados do próximo ano. Mas é possível que o Banco Central possa reduzir ainda mais a Selic ainda neste ciclo de cortes. A relação dívida-PIB deve ir para 95%. Toledo acredita que o dólar ao nível atual de R$ 5 esteja perto do equilíbrio.
Ele analisa que o câmbio e as taxas mais curtas de juros não estejam descolados dos fundamentos da economia. Já as curvas longas de juros, realmente, estão bem inclinadas. A recuperação da Bolsa, apesar de um tanto surpreendente, é sustentada pelo investidor, que não tem optado pela renda fixa, devidos aos níveis mais baixos dos juros. A reabertura mais segura da Europa e o processo gradual dos EUA animou os mercados, junto com a injeção de liquidez. Com tudo isso, é possível explicar o entusiasmo que está alavancando a Bolsa doméstica.