Acordo para a regulação global do mercado de carbono é um dos principais legados da COP26
Um dos principais avanços alcançados na 26ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 2021 foi o acordo para a regulação do artigo 6 das regras do Acordo de Paris. Realizada entre 1 e 12 de novembro de 2021 na cidade de Glasgow, na Escócia, este acordo obtido em consenso na COP26 deve permitir o desenvolvimento do mercado de créditos de carbono em diversos países ao redor do mundo, segundo especialistas consultados pelo Panorama Amec.
Além deste acordo, outros avanços foram registrados, mas também alguns pontos de frustração. Para falar sobre a avaliação geral da COP, ouvimos consultores das principais casas de assessoramento das assets no Brasil. Gustavo Pimentel é Diretor Executivo da Sitawi e Lauro Marins é Head de Mudanças Climáticas da Consultoria Resultante, ambos com longa experiência no trabalho de integração do ESG com as assets e fundos de pensão. Confira os principais trechos das duas entrevistas:
Qual é a avaliação dos avanços da COP26?
Lauro Marins: Não podemos dizer se a COP26 foi um sucesso ou um fracasso. Dependendo do interlocutor, ele vai dizer uma coisa ou outra. Mas temos de reconhecer avanços importantes. Por exemplo, vários artigos do livro de regras do Acordo de Paris foram aprovados e operacionalizados. Um deles, talvez o principal, foi o artigo 6 sobre o mercado de carbono. Não foi algo simples, pois teve de contar com o consenso de 194 países. A operacionalização do mercado de carbono foi um grande avanço do ponto de vista diplomático.
Gustavo Pimentel: Sem dúvida, o principal acordo alcançado foi a regulamentação do artigo 6 do mercado de carbono. Era um acordo já esperado, muito positivo, pois cria as bases para o desenvolvimento de um mercado globalmente regulado de carbono, com padrões comuns para a contabilização dos créditos entre os países. Outro ponto positivo foi a grande participação do setor privado, especificamente do setor financeiro, de atores do mercado de capitais que assumiram diversos compromissos voluntários, como por exemplo, de neutralidade de carbono de bancos, de portfólios de investidores. Houve boa participação dos investidores institucionais e fundos de pensão que, apesar de não formarem parte dos acordos da COP, definiram várias promessas para a questão do clima.
Houve algum ponto decepcionante da recente edição da COP?
LM: Um dos principais pontos negativos foram as metas para a redução do aquecimento global. A meta mais ambiciosa era de 1,5 graus Celsius até o final do século, mas ficou em 2,7 graus, que não é o ideal. Vários países apresentaram NDCs [Contribuição Nacionalmente Determinada] menos ambiciosas, quando na verdade, o necessário era ampliar as metas. Existe aqui o problema da velocidade, há muitas promessas e poucas ações. As emissões deveriam ser reduzidas em 40% até 2030, mas ainda estão se elevando. O risco é muito alto.
GP: Justamente houve um conjunto grande de promessas, mas apenas para 2050. Não houve compromissos com metas intermediárias de curto e médio prazos, não há critérios de accountability nisso. No meu ponto de vista, não adianta prometer que se atingirá a meta de Net Zero em 2050 e não fazer nada até 2049. Parece aquela história do alcoólatra que diz que vai parar de beber no ano que vem, mas que não faz nada de imediato.
Como avalia o posicionamento do governo brasileiro na COP26?
LM: O Brasil teve uma posição mais interessante na COP26, teve uma postura mais diplomática. Por exemplo, colaborou para a aprovação do artigo 6 do livro de regras. Mas não podemos comemorar nada ainda, pois as ações ainda são muito negativas. O país diz que pretende parar com o desmatamento apenas em 2030. Tivemos os índices mais altos de desmatamento das últimas décadas. Houve o desmantelamento do Ibama e dos órgãos de fiscalização. Tem várias áreas de garimpo que seguem funcionando a despeito da ilegalidade.
GP: Diria que o governo brasileiro foi para a COP para não melar os acordos. Ao contrário do que aconteceu nas duas últimas conferências, quando o governo brasileiro participou com posições muito intransigentes, bem anacrônicas. Agora, o governo flexibilizou essas posições e permitiu que os acordos fossem atingidos. Não foi necessariamente uma posição pró-ativa e construtiva, mas pelo menos deixou de lado as posições intransigentes. Ainda assim, o Brasil saiu do evento com olhar de desconfiança perante a comunidade internacional. Tanto é que nos últimos dias foram divulgados os dados reais do desmatamento no Brasil, que eram números já fechados antes da COP, mas que foram escondidos. Ou seja, se recuperou um pouco da confiança na COP, perdeu tudo de novo nas semanas seguintes.
Então, pode-se afirmar que não houve uma reversão da imagem negativa do Brasil na questão climática?
LM: É difícil avaliar. O Brasil não queria ser visto mais como bloqueador de acordos, e assim o fez. Mas não assumiu nenhum papel de protagonismo. O governo brasileiro não travou nenhuma discussão, mas também não avançou com sua agenda climática. Assinou apenas os acordos mais softs. Desta maneira, vai continuar sendo massacrado, e com razão, pelos países que estão cobrando que se pare o desmatamento no país. A imagem ainda continua manchada. O Brasil ainda continua no campo das promessas. O governo diz uma coisa, mas o desmatamento continua aumentando.
GP: Assim como houve boa participação do setor privado financeiro, também houve um importante protagonismo dos governos subnacionais. Tivemos participação expressiva de estados e municípios que apresentaram iniciativas durante a conferência. Apesar de não contarem com instrumentos tão amplos quanto dos governos federais, os governos subnacionais estão bastante construtivos.
Quais as consequências dos acordos climáticos para as assets e para o mercado financeiro?
LM: Temos de analisar duas linhas de consequências para as assets. Uma delas é o desenvolvimento de regulação específica na questão climática. É algo inevitável, sabemos que a regulação vai chegar. O Banco Central já definiu e sabemos que a Susep está preparando algo específico também. Vai entrar na pauta da regulação por bem ou por mal. A segunda linha é a das empresas, que fizeram em 2019, 2020 e 2021uma chuva de promessas para efeito em 2040. Neste ponto, podemos resgatar duas iniciativas interessantes. Uma delas é uma aliança entre bancos e assets. Tivemos duas assets brasileiras, a JGP e a Fama que assinaram essa aliança. É muito pouco para o Brasil. E temos o mesmo acordo para os bancos, que tivemos Santander, Bradesco e Itaú como signatários. Isso vai fazer com que as empresas sejam mais responsáveis do que é ser Net Zero. Tivemos um novo padrão aprovado na COP26 do que deve ser considerado para que a empresa seja Net Zero. Porém, todos esses acordos que estamos vendo, nenhum deles tem uma meta para ser Net Zero em um determinado prazo. O risco é muito grande porque não há metas aliadas à ciência. Isso bate nas assets.
GP: Acho que para o investidor que já vinha acompanhando a questão do clima, não muda muita coisa. Mas para o investidor que não vinha acompanhando o tema, acho que ajuda a destacar que a agenda está acontecendo. Acredito que o conjunto de investidores que olhavam clima como questão de longo prazo, agora não é bem assim, por exemplo, os mercados de carbono estão mais próximos de se desenvolver também nos países em desenvolvimento. Reforça o roadmap que já vínhamos destacando.
A COP26 contribui para acelerar o estabelecimento de novas regulações específicas para o mercado brasileiro?
LM: Sim, acelera. Primeiro temos a questão da taxonomia,da União Europeia que entrou forte nesse processo. A regulação da SEC está chegando também. As assets brasileiras têm uma oportunidade de se antecipar. A CVM já está olhando para isso. O próprio Banco Central. A Susep está olhando isso. As regulações irão chegar, talvez mais soft para alguns setores do que para outros. O custo de esperar pode ser grande. Melhor se antecipar. Acho que a Previc também irá se movimentar em algum momento. Acho que todos devem colocar o clima nessa agenda regulatória como um todo.
GP: Existe uma agenda regulatória e autorregulatória de investimentos ESG e crescimento sustentável e climático, mas não necessariamente essa agenda depende das COPs. São processos independentes. Mas temos de considerar que está avançando uma maior regulamentação ESG na Europa. Temos o SFDR, Sustainable Finance Disclosure Regulation, existe o avanço da taxonomia europeia e também as regras de disclosure. Esses dois elementos ajudam a pautar agendas regulatórias locais. No Brasil temos o avanço da regulação do Banco Central, o que está criando as bases para que os reguladores das assets e dos fundos de pensão possam replicar em algum momento. Temos a autorregulação da Anbima, que soltou a minuta da nova classificação ESG e de sustentabilidade de fundos de renda variável e de renda fixa. Toda essa agenda está andando e está chegando aqui, vai afetar cada vez mais as assets e os fundos de pensão.
Poderia citar alguma iniciativa que vocês fizeram para promover maior engajamento das assets na questão climática?
GP: Nós temos uma iniciativa chamada “Investidores pelo Clima”, o IPC. Aqui no Brasil, temos 32 signatários entre assets, fundos de pensão e multi-family offices. Dsse conjunto, 18 assinaram uma declaração do IPC que provoca o governo brasileiro, no sentido de desenvolver políticas climáticas compatíveis com o Acordo de Paris. É um grupo com cerca de R$ 900 bilhões de ativos sob gestão que cobra do governo brasileiro que se posicione em algumas questões, como o maior combate ao desmatamento, que ajude a criar mercados de carbono, que estabeleça regras de precificação, que colabore com o acordo global do clima, entre outros pontos.
Quais as dificuldades das assets de avançar na questão climática?
LM: A compreensão sobre o tema ainda é muito difusa. As assets maiores têm analistas específicos. As menores não têm, e portanto a compreensão ainda é etérea. O segundo ponto é sobre como fazer. “Eu sei que a agenda é importante, mas não sei por onde começar, quais são os critérios”, dizem. E por fim, implementar essa agenda na asset não é simples, tem uma série de passos nesta direção. Existe uma certa complexidade sim, mas falta que as assets assumam sua parcela de responsabilidade neste tema. Não adianta nada ter a regra do jogo clara, mas as assets continuarem jogando no curto prazo e não entrarem efetivamente na agenda. Se continuarem com seus investimentos sem critérios ESG, as empresas não irão mudar. Muitas das assets que conversamos dizem que irão esperar a regulação chegar. Ou dizem que irão esperar o fundo de pensão exigir critérios ESG. Mas daí pode ser muito tarde. A inação por parte das assets é muito ruim. É preciso tomar uma atitude proativa, não apenas porque o concorrente se mexeu ou o cliente exigiu. É a história do ovo e da galinha. Só porque o cliente pediu? A continuar com essa visão, não avançaremos substancialmente.
Os posicionamentos de grandes assets globais, como a BlackRock e outras assets, em favor do ESG continua com forte impacto para o mercado?
LM: Sim, continua com grande impacto. Acredito que iremos ver essa atitude com mais frequência daqui para frente. A BlackRock será cada vez mais vocal. E veremos outras se posicionando. São assets que, repito, querem ser parte da solução e não do problema. Acho que esses posicionamentos deveriam ser até mais frequentes.
GP: Aumentaram os compromissos (pledges) de Net Zero das assets. Já existiam antes a Net Zero Asset Management Alliance e a Net Zero Asset Owner Alliance. É claro que a COP ajuda a criar o momento para que essas alianças sejam ampliadas. Na COP26, fizeram até a aliança das alianças, que é a Glasgow Net Zero Finance Alliance, que reuniu os bancos, assets e demais instituições. Esse foi outro grande avanço anunciado durante a conferência. Pena que essas alianças e promessas carecem de metas intermediárias e de compromissos de accountability, mas não deixam de representar avanços importantes.