Poison Pills no Brasil tiveram utilização oposta à experiência dos principais mercados internacionais
Se as chamadas Poison Pills surgiram e foram utilizadas nos principais mercados internacionais como um mecanismo de proteção contra aquisições hostis nas companhias de capital disperso ou pulverizado – ou seja, sem acionista controlador definido – aqui no Brasil, seu uso apresenta uma experiência bastante heterogênea a até oposta ao conceito original.
A presente edição do Panorama Amec (número 55) ouviu especialistas, gestores, advogados e ex-Diretores da CVM para analisar a utilização dessas cláusulas estatutárias pelas companhias abertas e listadas no mercado doméstico. Para aprofundar o debate e a compreensão do tema, será necessário repassar a experiência internacional e compará-la com a utilização das Poison Pills por aqui.
O curioso termo relacionado a essa cláusula estatutária – que em tradução literal significa “pílula de veneno” – foi cunhado originalmente nos Estados Unidos, em 1982, por alguns banqueiros em reação ao mecanismo criado pelo advogado Martin Lipton, um tipo específico de “warrant dividend plan” (plano de garantia de dividendos). Esse plano constituía uma forma de proteção utilizada principalmente pelas corporations contra aquisições hostis no mercado americano e envolvia um gatilho de distribuição de bônus de subscrição. Em caso de tentativa de aquisição hostil, os acionistas podiam subscrever a quantidade de ações a um preço reduzido, de forma a diluir concentrações que se julgassem inadequadas. Foi um mecanismo bastante utilizado no mercado americano.
Patrícia Pellini, consultora de Advocacy da Amec e ex-Superintendente de Regulação da B3, confirma que o conceito originário de Poison Pill tem relação com mecanismo de defesa contra tentativa de aquisição hostil de modo a permitir uma negociação em melhores condições para o conjunto de acionistas”, diz.
Apesar de sua disseminada utilização nos Estados Unidos, foi no mercado inglês que as Poison Pills encontraram maior desenvolvimento com experiências de autorregulação e, posteriormente, de regulação. Ex-Presidente do Comitê de Aquisições e Fusões (CAF) e atual Diretor-Presidente da Vivest, Walter Mendes, transmite seu ponto de vista sobre a evolução desse mecanismo no Reino Unido. Ele fez um curso no Take Over Panel, em Londres, que o ajudou a formar sua visão sobre o assunto. “Foi um curso para estudar todas as questões do código do Take Over Panel, e um deles exatamente teve foco sobre a oferta obrigatória provocada pelo Poison Pill”, lembra Walter, que também é membro do Conselho Deliberativo da Amec.
Ele explica que as Poison Pills nos mercados americano, inglês e na comunidade europeia, foram introduzidas em função da existência de empresas cujo controle não é definido. “O número de empresas sem controle definido aumentou muito no passado na Inglaterra, Estados Unidos e outros, e isso aconteceu porque as empresas precisavam de muitos recursos para poder fazer os investimentos, para financiar o crescimento e enfrentar a concorrência”, explica Walter.
Na Inglaterra, foi definido que um acionista ou grupo de acionistas que adquirisse mais de 30% das ações, era obrigado a fazer uma oferta para todos os demais pelo valor da sua última compra. Isso fazia com que se limitasse esse percentual de ações que um acionista pudesse deter, para evitar ou então reduzir essa possibilidade de se constituir um controle efetivo com uma participação relativamente baixa.
“Foi uma maneira de proteger um pouco mais os minoritários e garantir que se um acionista ou um grupo de acionistas, agindo em conjunto, quisesse efetivamente ter o controle, então teria que comprar todas as ações”, explica Walter. Esses 30% foram instituídos, na Inglaterra, pelo Take Over Panel; um órgão de autorregulação do mercado. A partir de 2006, ele foi incorporado à legislação societária inglesa e depois foi agregado à legislação societária da comunidade econômica europeia, por meio de uma diretiva específica.
Walter esclarece que no Brasil e nos Estados Unidos, as Poison Pills são cláusulas presentes nos estatutos sociais das companhias, e possuem independência em relação à regulação e à legislação. “Isso virou uma prática generalizada lá no mercado inglês, e depois no mercado europeu. Não é uma prática generalizada nos Estados Unidos, depende de empresa para empresa, então não está na regulação no mercado americano”, comenta.
Experiência brasileira
A primeira empresa a incluir a Poison Pill em seu estatuto social no Brasil foi a Natura em 2004. Desde então, inúmeras companhias incluíram em seus respectivos estatutos cláusulas semelhantes, porém, com finalidades diversas. Com a ampliação da onda de IPOs da Bolsa doméstica, a prática se tornou mais frequente a partir de 2007. Ao abrir o capital, muitas empresas com controle familiar buscaram nesse mecanismo uma maneira de proteger ainda mais o controle da companhia.
Contudo, se nos principais mercados internacionais, as pílulas de veneno ganharam destaque para garantir a perpetuação da dispersão acionária das corporations, aqui no Brasil, a cláusula teve seu uso inicial consagrado justamente para impedir a perda de controle por um acionista ou grupo, o que muitos especialistas e gestores consideram um tipo de distorção.
Um problema apontado por diversos gestores foi a combinação das poison pills com a chamada “cláusula pétrea” em diversas companhias. O tema é discutido em entrevista nesta edição com Otávio Yazbek, advogado e ex-Diretor da CVM, que cita o Parecer de Orientação n. 36/2009 da CVM como uma ação que teve o objetivo de corrigir tal distorção (leia entrevista). A manutenção da cláusula com caráter pétreo vinha provocando uma série de problemas às companhias e seus acionistas, que ficavam amarrados ao controle exercido por um acionista, muitas vezes em desalinhamento com a maioria dos acionistas.
Patrícia explica que a utilização de tais cláusulas, na maioria das vezes, foi motivada porque a Lei societária brasileira obriga a realização de OPA apenas em caso de alienação do controle (OPA de Tag Along). “O problema é que não há obrigação de OPA em caso de aquisição originária de controle. Devido a essa lacuna, algumas companhias começaram a colocar cláusulas Poison Pills com prêmios excessivos ou mesmo com exigência de laudo de avaliação, como obstáculos para proteger o controle”, diz.
A consultora da Amec lembra, contudo, que nem só de exemplos distorcidos vive a experiência brasileira com essas cláusulas. Em alguns poucos casos, como o de AES Eletropaulo – que adotou uma medida de defesa nos moldes da OPA 30%, proposta originalmente na revisão do Novo Mercado – o mecanismo, muito embora representasse potencial barreira à aquisição de participações acionárias mais relevantes, não impediu uma das poucas e emblemáticas disputas de controle via OPA de Aquisição de Controle no Brasil, ao longo de 2018.
Tentativas de padronização
Em virtude da heterogeneidade dos usos dessas cláusulas no mercado doméstico e dos conflitos gerados pelas diferentes interpretações, ocorreram algumas tentativas de criar regras para padronizar a utilização do mecanismo. A B3 elaborou, pelo menos duas vezes, propostas para definição de regras mínimas aplicáveis às medidas de defesa para as companhias listadas no Novo Mercado.
A primeira tentativa ocorreu na revisão de 2008, com a proposta da “OPA 30”, que procurava estabelecer o percentual de 30% como o gatilho para acionamento da Poison Pill. A mudança encontrou resistência por parte das companhias e acabou sendo rejeitada. O tema voltou a ser debatido e apresentado na recente revisão das regras em 2017, mas novamente sem sucesso.
Ainda há tentativas de tratamento do tema a partir de documentos e iniciativas de autorregulação voluntária, notadamente, do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). O tema foi tratado no Código Brasileiro de Governança Corporativa e em uma carta diretriz do instituto.
Na matéria e entrevista a seguir apresentamos diferentes análises e possíveis propostas defendidas pelos especialistas para promover o aperfeiçoamento do uso das Poison Pills no mercado brasileiro.