Política de Dividendos e Responsabilidade Fiduciária
Em 1990, Merton Miller foi agraciado com o Prêmio Nobel por ter desenvolvido, junto com Franco Modigliani (vencedor do prêmio cinco anos antes) uma teoria contra intuitiva. A chamada Proposição Modigliani-Miller diz que o valor de uma empresa é independente da sua estrutura de capital. Dentre outras consequências, ela implica em dizer que a política de dividendos é irrelevante para a empresa.
Em vista disso, é curioso notar que muitas das recentes iniciativas de aprimoramento de governança corporativa recomendam a existência de uma política de dividendos.
Primeiramente, todas as empresas abertas brasileiras precisam divulgar no seu Formulário de Referência, item 3.4. suas práticas de distribuição de dividendos, inclusive a informação (item e) de se a empresa “possui uma política de destinação de resultados formalmente aprovada, informando órgão responsável pela aprovação, data da aprovação e, caso o emissor divulgue a política, locais na rede mundial de computadores onde o documento pode ser consultado”.
É bem verdade que a maioria delas limita-se a repetir o texto legal, que trata da distribuição legal de 25% do lucro, deduzido de reservas. Há exceções, inclusive com políticas muito bem pensadas, tais como a Vale ou Copasa. Outras, como da Grendene, são específicas à sua situação (distribuir 100% dos resultados não advindos de incentivos fiscais). Curiosamente, a própria B3 não possui tal política.
Saindo do “empurrãozinho” (nudge) legal para se pensar em dividendos, o Código do IBGC traz no seu item 1.9 a recomendação de que:
As empresas devem elaborar e divulgar política de distribuição de dividendos definida pelo conselho de administração e aprovada pela assembleia geral, ela deve prever, dentre outros aspectos: i. a periodicidade dos pagamentos; ii. o parâmetro de referência a ser utilizado para definição do montante (percentuais do lucro líquido ajustado e do fluxo de caixa livre, dentre outros); iii. as circunstâncias e os fatores que podem afetar a distribuição de dividendos; iv. a frequência com que a política deve ser revisada.
Na mesma linha, o Código Brasileiro de Governança Corporativa – Companhias Abertas também toca no assunto. Editado por um conjunto de 13 entidades do mercado de capitais, reunidas no chamado Grupo Interagentes, o Código foi incorporado pelo regramento da CVM. A partir de outubro de 2018, as empresas abertas precisam divulgar um Informe sobre a adoção das práticas do código, dentro do sistema “pratique ou explique”. Uma das recomendações é exatamente a adoção de uma Política de Destinação de Resultados (Item 1.7). A recomendação do código é de que:
A companhia deve elaborar e divulgar política de destinação de resultados definida pelo conselho de administração. Entre outros aspectos, tal política deve prever a periodicidade de pagamentos de dividendos e o parâmetro de referência a ser utilizado para a definição do respectivo montante (percentuais do lucro líquido ajustado e do fluxo de caixa livre, entre outros).
Mas por que tanta preocupação com dividendos, se Modigliani e Miller diziam que eles eram irrelevantes? Porque apesar do prêmio Nobel, eles não são tão irrelevantes assim.
Primeiramente, os próprios laureados introduziram hipóteses adicionais em seus modelos, tentando adaptá-los à vida real e mostrando razões pelas quais, de fato, os dividendos fazem diferença. A primeira delas diz respeito a impostos.
O resultado de uma companhia só pode chegar nos acionistas através de duas maneiras: dividendos ou ganhos de capital. Simplisticamente, o lucro gerado pode ser distribuído ao acionista ou retido na empresa, aumentando seu valor de mercado ou em caso de uma aquisição. Na maior parte dos países do mundo, esses dois caminhos são taxados de forma muito distinta, sendo que nos Estados Unidos, historicamente a taxação dos dividendos sempre foi mais alta que dos ganhos de capital.
Além disso, a decisão sobre pagar dividendos está atrelada a outra, qual seja, da estrutura de capital da empresa. Ao se pagar dividendos, ceteris paribus, aumenta-se a alavancagem através de financiamentos. Como os juros desses financiamentos são dedutíveis do imposto de renda (ao contrário dos dividendos), cria-se um incentivo a pagar mais dividendos para aumentar a alavancagem e assim reduzir a tributação média.
Outras razões foram adicionadas ao modelo. Podemos falar do efeito clientela: uma empresa atrai determinado tipo de acionista que tem uma preferência a respeito do fluxo de dividendos. Essa preferência, assumindo agentes racionais, também tem relação com impostos. No Brasil, por exemplo, investidores individuais são isentos de imposto sobre dividendos tendo, portanto, motivos para buscar empresas com fluxos relevantes e consistentes de distribuições. Alterações na política, portanto, podem agradar ou desagradar essa base de acionistas, levando a consequências ao preço das ações.
Mas até aqui assumimos que empresas e investidores possuem o mesmo nível de informações sobre a realidade da empresa – uma premissa facilmente questionável. Se relaxarmos esta hipótese (e nos aproximarmos da vida real), podemos enxergar na política de dividendos pelo menos duas funções adicionais. A primeira delas vê nos dividendos uma forma de comunicar os acionistas sobre as perspectivas operacionais da empresa. É o chamado efeito sinalização. Se a administração vê um futuro promissor, aumenta o pagamento de dividendos. Por outro lado, se as perspectivas são mais arriscadas, reduzem o fluxo. Uma consequência desse efeito é as empresas têm uma dificuldade de fazer alterações no seu dividendo de curto prazo (sticky dividends), uma vez que o mercado tentará ler o que está por trás da decisão.
Outra assimetria de informações que os dividendos podem mitigar tem relação com os conflitos de agência. Trata-se das diferenças de objetivos que podem ocorrer entre os acionistas e a administração – ou, em mercados como o brasileiro, entre controladores e minoritários. De acordo com esta visão, uma retenção excessiva de dividendos seria resultado dos benefícios particulares que podem ser auferidos pelos insiders, que podem variar do estratégico (encastelamento e aumento de poder com uma operação de maior porte) ao mundano (maiores possibilidades de apropriação de benefícios, tais como comprar um jato corporativo). Existem estudos acadêmicos relacionando um maior payout[1] a jurisdições com melhores mecanismos de proteção aos investidores[2].
No Brasil, apesar de sermos um dos poucos países do mundo com um dividendo mínimo obrigatório por lei (25% do lucro líquido ajustado), o payout de nossas empresas é historicamente menor do que a média mundial[3]. Isso reflete uma tendência às empresas de reterem lucros apesar dos incentivos legais e tributários (ao contrário dos EUA, no Brasil a distribuição de lucros é muito incentivada pelas alíquotas de imposto). Se considerarmos esse ponto junto com os achados acadêmicos, podemos concluir que a existência de possibilidades de expropriação dos acionistas minoritários leva a um incentivo à retenção de lucro. Se considerarmos os casos de prêmios de controle em fusões e aquisições (explícitos ou escondidos em operações complexas), a razão dessa retenção fica fácil de entender. E começamos, portanto, a compreender a preocupação do regulador e das entidades de boas práticas com a decisão sobre dividendos.
Por fim, há que se lembrar que mesmo a hipótese de que os agentes são racionais pode ser questionada. Assim, embora os investidores possam sempre “simular” a política de dividendos que gostariam (por exemplo, vendendo parte de suas ações numa empresa que não paga dividendos para criar um fluxo de renda), muitos trabalham na verdade com uma “contabilidade mental” que separa a “caixinha” do principal (ações) da “caixinha” da renda (dividendos). Tudo isso deve ser considerado pela administração na hora de decidir mudanças na distribuição de resultados.
A primeira coisa que precisa ser dita sobre dividendos é que não existe uma regra única. Uma empresa de alto crescimento e/ou intensiva em capital está plenamente justificada em não pagar nenhum dividendo. Os acionistas se beneficiam pela possibilidade de reinvestir a geração de caixa operacional, e quer mesmo que a administração faça isso. Por outro lado, é esperado de uma empresa madura, fortemente geradora de caixa e sem grandes oportunidades de investimento, a distribuição máxima possível aos seus acionistas.
Entre um extremo e outro, temos todo tipo de situação. Qualquer tentativa, portanto, de estabelecer uma “regra de bolo” para uma política de dividendos terá impactos adversos. E isso vale inclusive para nossa lei. O percentual de 25% pode ser baixo para algumas empresas, alto para outras e ainda inviável para outro grupo.
O conceito que mais se impõe do passeio acadêmico que fizemos, mantendo a premissa da racionalidade, é o do dividendo como variável residual numa decisão de estrutura de capital. Conhecendo seus planos de longo prazo para operações e investimentos (inclusive cenários de contingência), a administração deve estabelecer um nível ideal de alavancagem, considerando aspectos fiscais (alíquotas, benefícios, etc.), financeiros (taxas de juros, spread de risco, rating…), oportunidades de fusões e aquisições, características e volatilidade dos mercados de atuação, incluindo intensidade de capital. O dividendo deve ser a variável “de ajuste” de toda essa equação.
Para que este processo decisório seja legitimado e blindado contra diferenças de nível de informação e desalinhamento de interesses entre a administração, controlador e acionistas minoritários(vide acima), o ideal é que ele seja transparente, sobretudo através de uma política formal – não de dividendos – mas de estrutura de capital, que tem a distribuição de lucros como uma das variáveis.
Mas, independentemente de haver ou não uma política formal para balizar a decisão de distribuição de dividendos, é importante que os fatores acima sejam considerados pelos administradores na hora da decisão. Nesse contexto, o recomendável é que não se opte de maneira cega pelo mínimo legal – isso pode ser bom ou ruim para a empresa.
Ainda mais relevante é considerar as implicações dos deveres de diligência (Artigo 154 da Lei 6.404/76) lealdade (Artigo 155) dos administradores aplicáveis à decisão sobre dividendos. Numa análise simplificada, devem os administradores fazer a distribuição que, depois de um entendimento profundo (diligência) atenda aos melhores interesses da companhia (lealdade). Assim, o valor do dividendo não pode ser muito menor nem muito maior: precisa ser o ideal.
Ambos os extremos trazem problemas. Uma empresa que paga muito menos dividendos do que deveria pode estar incorrendo em conflitos de agência: retendo resultado para que a administração gaste o capital como achar melhor, ou para que o acionista controlador se aproprie de uma parcela desproporcional do mesmo através de um prêmio de controle.
Do outro lado, se a empresa pagar dividendos excessivos, pode estar comprometendo sua saúde financeira. O leitor pode perguntar: mas por que uma empresa tomaria uma atitude como essa? Fácil: para atender aos interesses de um acionista controlador endividado, ou simplesmente que queira ter dinheiro em mãos. Vemos no mercado brasileiro dois casos limites: a Oi, que pagou bilhões em dividendos para seus controladores e acabou quebrando, e a Light, que chegou muito perto disso, atrapalhando mesmo suas operações, logo depois da sua privatização.
O pior é que essas lições não aparentemente foram aprendidas: recentemente tivemos notícias de uma empresa altamente endividada pagando um dividendo extraordinário substancial em prol do seu controlador ainda mais endividado.
Há também casos de abusos por conta da teoria da sinalização. Recentemente a Smiles, empresa fortemente geradora de caixa e com pouca intensidade de capital, alterou sua política de dividendos. Essa mudança fez com que a empresa, que até recentemente distribuia 100% dos seus passou a reter parcela significativa dos lucros. Os acionistas, que valorizavam muito os dividendos não apenas como sinalização das atividades futuras, mas pela garantia de controle dos conflitos de interesses com os acionistas controladores, ficaram profundamente decepcionados e venderam as ações em grande quantidade. Elas caíram quase 15% nos dias seguintes ao anúncio.
Coincidência ou não, 7 meses depois a Smiles anunciou uma reestruturação societária, pela qual os controladores na prática procuram aumentar sua participação na empresa, interessados, portanto em sua desvalorização. Cabe questionar até que ponto o anúncio do corte de dividendos foi parte de uma estratégia do controlador para desvalorizar a empresa.
Histórias assim trazem lições importantes. Para as empresas, sugerem as vantagens de uma política de distribuição de resultados bem pensada, que fuja das platitudes de repetir a lei e tenha ligação com a realidade da companhia e sua estrutura de capital. Para os administradores – notadamente membros do conselho de administração – a reflexão sobre como as decisões de distribuição estão relacionadas com seus deveres de diligência e lealdade. Para os investidores, a importância de um entendimento das reais práticas de governança das companhias, e da qualidade dos seus órgãos de administração, para que possam ser confiados a tomar a melhor decisão em benefício de todos os acionistas.
E para os reguladores de mercado, fica o alerta para como uma empresa pode ser mesmo levada à bancarrota por uma decisão aparentemente legal, mas que se desprovida dos princípios de lealdade e diligência mascara uma transferência de valores que prejudica o mercado de capitais. Os administradores que incorrerem nesse caso devem ser punidos.
[1] Valor do dividendo dividido pelo lucro do exercício.
[2] Veja principalmente Lopes de Silanes, Shleifer e Vishny (1998), disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=52871.
[3] Importante registrar que em anos recentes essa tendência se inverteu.