A Bola está Conosco

Em 2016 o Brasil começa a mudar. Não – não estamos falando de alguma previsão mágica sobre os rumos do drama político que vivemos hoje. A mudança à que nos referimos já está contratada. Trata-se das novas normas de votação a distância aprovadas pela CVM neste ano (Instrução 561), e que começam a valer na temporada de assembleias de 2016.

Não se trata de um exagero. A norma que, como veremos, facilita a participação em assembleias pode ter o condão de provocar uma revolução na capacidade dos investidores em exercerem seu papel na governança corporativa de nossas empresas e, por consequência, torná-las melhores, mais competitivas e mais lucrativas. Mas, para isso acontecer, algumas condições precisam ser observadas.

Primeiramente, examinemos o contexto histórico. O exercício do direito de voto por acionistas minoritários sempre foi visto como algo de futilidade num mercado dominado por empresas com grupo de controle definido. Dado que este tem sido o modelo dominante em nosso país nos últimos 80 anos (vide apresentação do historiador Ney Carvalho, no YouTube), é inegável um certo ceticismo sobre a capacidade de indicados por minoritários influenciarem o processo decisório. Três movimentos, contudo, tornaram essa visão anacrônica. Em ordem crescente de prioridade, podemos listar (1) o (re)surgimento das corporations, (2) a lei 10.303/01 e (3) as novas expectativas geradas sobre as estruturas de governança.

A existência de empresas sem acionista controlador costuma ser visto como um divisor de águas. Afinal, ela coloca de cabeça para baixo o entendimento usual sobre o balanço de forças na companhia, aumentando o poder e a relevância do conselho de administração. Contudo, a extensão desse modelo, que parecia fadado a um crescimento exponencial na década passada, acabou arrefecendo, criando assim um número limitado de empresas, insuficientes para determinar uma mudança na atitude dos investidores. Adicionalmente, os poucos exemplares desse modelo possuem características próprias muito fortes, que impedem uma abordagem generalista sobre os impactos de suas estruturas de governança.

O segundo movimento foi a promulgação da Lei 10.303, em 2001. Ao reformar a legislação societária, ela reforçou as possibilidades de influência dos acionistas minoritários na formação dos órgãos de governança das companhias, notadamente os conselhos de administração e fiscal. Além de facilitar a eleição de independentes, a lei conferiu poderes individuais de fiscalização aos conselheiros fiscais. Começava, portanto, a cair por terra a visão de que os minoritários nada poderiam fazer de relevante.

Mas, talvez o movimento mais importante tenha sido a mudança nas expectativas da sociedade sobre o papel dos órgãos de governança no direcionamento das empresas – tanto do ponto de vista estratégico e operacional, como no campo da ética, respeito às leis e aos direitos dos acionistas. De um lado, uma atuação mais incisiva dos reguladores com relação à responsabilidade dos administradores acordou alguns participantes do mercado para as consequências de seus atos. Do outro lado, a sociedade – e os investidores em particular – passaram a ser muito mais interessados sobre como os administradores reagem aos constantes desafios das empresas, especialmente quando ocorrem grandes problemas. Neste contexto, a presença de vozes efetivamente independentes nos órgãos de governança torna-se fundamental para garantir a sua efetividade.

Nessa nova realidade, o exercício do poder de voto por parte dos investidores institucionais ganha uma relevância que talvez não existisse no passado. Ele vem crescendo, como pode ser observado nas assembleias mais recentes. Contudo, fatores como custos, burocracia e cultura ainda impedem o pleno exercício das responsabilidades dos gestores como “donos” das empresas investidas.

Pois a revolução é exatamente a mudança propiciada pela CVM nos dois primeiro fatores. O regulador já vinha atuando na redução dos entraves para participação de investidores nas assembleias. Exemplos incluem o pedido público de procuração, os manuais de participação em assembleias, a dispensa de advogado para representação de gestores, o Oficio Circular CVM SEP 01/2014 e, agora, a Instrução 561.

A nova regulamentação vem disciplinar o chamado “voto a distância”, criado a partir da Lei 12.431, de 2011. Ao exercer seu papel, a CVM deu uma verdadeira aula de como ser um bom regulador. Passou os últimos anos debatendo intensamente com o mercado sobre qual a melhor forma de dar concretude ao voto a distância. Nesse processo, ela partiu de uma determinada visão, e teve a maturidade de alterá-la significativamente a partir do que escutou dos entes regulados. O resultado é uma norma moderna, inteligente e útil, que tem o potencial de revolucionar as nossas empresas abertas.

Em sua essência, a Instrução 561 cria o chamado “proxy card” para os investidores brasileiros. Trata-se de uma medida que nos aproxima das normas internacionais. No mundo todo os investidores institucionais podem votar nas suas empresas investidas sem sair de suas mesas – originalmente por correio, e crescentemente por via eletrônica. Mas, no Brasil até agora era necessário ter um ser humano fisicamente na assembleia para representar o investidor.

Mas isso é só um aspecto da nova regra. Ao consultar os participantes do mercado, a CVM pode entender e utilizar da melhor maneira possível as plataformas  já existentes no mercado de capitais. Os provedores de serviço que já dispõem de infraestrutura para integrar empresas e investidores (escrituradores, custodiantes, depositários,…) serão os responsáveis pelo tráfego de informações neste novo processo. Assim, os custos de implementação serão muito baixos – e sem dúvida infinitamente inferiores à necessidade de presença física existente até então. Prazos foram calibrados para conciliar alguns mandamentos legais com as necessidades dos investidores e dos prestadores de serviço.

O conceito utilizado pela CVM é aquilo que os investidores mais precisavam. O voto a distância depende menos de soluções tecnológicas mirabolantes, e mais da garantia de um fluxo de informações justo para todas as partes, que dê concretude aos direitos dos acionistas e seja ao mesmo tempo implementável. Para aqueles que votam sem estar presentes – a maioria dos institucionais no mundo todo – o grande desafio é ter a capacidade de se manifestar nas propostas colocadas tanto pela administração como por acionistas dissidentes. A Instrução dá largos passos nessa direção, facilitando assim a eleição de conselheiros independentes, a instalação de conselho fiscal e mesmo a criação de shareholder resolutions, algo que já deveria ser possível desde nossa lei de 1976, mas que na prática raramente era feito. Agora qualquer acionista relevante terá a possibilidade de propor itens para inclusão na pauta de votação de uma assembleia.

No processo, vários entraves burocráticos foram eliminados. A temida necessidade de renovação de procuração – uma jabuticaba que causava uma perda de até 30% dos votos dos estrangeiros efetivamente recebidos – cai por terra. Neste sentido, a norma melhora a vida tanto dos investidores locais como dos estrangeiros.

Mas, talvez o maior impacto da Instrução 561 venha a ser observado nos próximos anos. Ele acontecerá na mudança de comportamento necessária por parte de empresas e investidores para que ela atinja seus objetivos.

Do lado dos investidores, é fundamental compreender que as novas regras requerem um nível crescente de profissionalismo no engajamento com as empresas investidas. Iniciativas para votar matérias na véspera da assembleia ainda serão possíveis, mas elas terão a enorme desvantagem de não poder contar com o apoio daqueles que votam a distância. Assim, veremos cada vez mais os movimentos ativistas acontecendo com maior antecedência – e possivelmente num diálogo produtivo com as companhias.

Além disso, a eliminação dos custos de participação em assembleia acaba com a principal razão para o absenteísmo dos investidores institucionais. Não há mais desculpa para não votar na imensa maioria dos casos. E o crescente entendimento do dever fiduciário dos institucionais deve levar a um grande aumento na participação destes.

Como corolário, será importante que os investidores desenvolvam seus próprios mecanismos para cumprirem essa obrigação. Não basta mais ter uma ‘política de voto’. É necessário que cada investidor institucional desenvolva um plano de atuação na governança das empresas investidas (rules of engagement), com o objetivo de proteger e maximizar os ativos que lhes foram confiados pelos clientes. Há muito trabalho pela frente.

Do lado das empresas, a situação não é diferente. Além de entenderem seu papel perante as novas normas, elas deverão refletir sobre suas consequências na sua relação com os investidores. As boas empresas de capital aberto utilizarão esta oportunidade para dar um verdadeiro ‘boot‘ nas suas relações com os investidores. A criação de um período pré-assemblear é particularmente importante para incentivar a troca de informações e expectativas entre companhia e investidores. Há espaço agora para a construção de órgãos de governança mais eficazes e preparados para os desafios das companhias abertas, não apenas com maior numero de independentes, mas com membros que complementem os órgãos societários de maneira construtiva.

E por tudo isso que os impactos da Instrução 561 não podem ser minimizados. A CVM fez a sua parte. Cabe agora aos regulados – investidores, companhias e provedores de serviço – fazerem as suas. O resultado pode ser um capitalismo muito mais saudável.