CAF é encerrado e deixa semente para o futuro do mercado brasileiro
Em um momento em que avança a discussão sobre a importância de temas como o capitalismo de Stakeholders e a adoção de princípios ESG na avaliação de ativos, quando se trata de melhores práticas de governança em reorganizações societárias, o mercado brasileiro parece ainda não estar maduro o suficiente. É o que mostrou a tentativa recente de implementar práticas de autorregulação nessas operações pelo Comitê de Aquisições e Fusões (CAF), que teve suas atividades encerradas no último dia 31 de maio. Inspirado no The Takeover Panel inglês, o comitê brasileiro tinha por objetivo analisar e conferir um selo de qualidade de boas práticas de governança corporativa em operações de fusões e aquisições.
Criado em 2013, o CAF foi responsável pelo desenvolvimento de um código de melhores práticas de autorregulação, o que de certa forma foi a semente deixada para iniciativas futuras. O código traz os princípios que guiam as regras de melhores práticas, entre as quais a igualdade entre acionistas e equidade entre titulares de ações de diferentes espécies e classes. Estruturado a partir da percepção de mercado de que havia a necessidade de melhorar os processos de reorganizações societárias e também entre partes relacionadas no Brasil, o comitê enfrentou dificuldades para obter credibilidade e legitimidade, necessários para que ganhasse tração.
Walter Mendes, Presidente do fundo de pensão Vivest, ex-Presidente e atual membro do Conselho Deliberativo da Amec, afirma que iniciativas como a do comitê no Brasil precisam de três ingredientes para ganhar credibilidade: independência técnica, financeira e apoio do governo, assim como foi a experiência do órgão inglês. “O CAF trouxe uma conscientização sobre essa questão e deixou uma semente. A CVM estimulou, mas não garantiu que as empresas aderissem como obrigação. A adesão ao comitê também implicava que gestoras, bancos de investimento e escritórios de advocacia abrissem mão de liberdade e, para isso, precisavam de um estímulo regulatório ou financeiro”, diz.
Durante os anos de atuação, o CAF fez a análise de apenas dois
processos de reorganizações societárias, um da JBS, que não foi concretizado por decisão da própria companhia e outro que foi mantido em sigilo, já que estava sob arbitragem. Apenas uma empresa se tornou aderente ao código de autorregulação do comitê, a Azul. “Não tivemos nenhuma operação levada a efeito com a chancela do CAF. Minha avaliação é que temos desafios para enfrentar no Brasil do ponto de vista da governança”, conta o ex-Presidente do CAF Otávio Yazbek, sócio da Yazbek Advogados e ex-Diretor da CVM.
De acordo com ele, muitos advogados viam o CAF como uma etapa a mais no processo, o que poderia limitar a liberdade para estruturar as operações, ao fazer exigências e impor princípios, como o tratamento igualitário aos acionistas. “Havia a preocupação em fazer a operação sair e atender ao interesse do controlador. Como a chancela do CAF não era obrigatória, apenas uma sinalização de boas práticas, de modo geral se preferia levar as operações adiante e enfrentar questionamentos que poderiam surgir no futuro”, afirma. Ele lembra que o comitê implementou iniciativas para reduzir as resistências, como a possibilidade de consultas não-vinculantes, mas que não surtiram efeito.
Vanessa Brenneke, advogada societária e ex-Diretora Executiva da ACAF (Associação criada para que o comitê funcionasse de forma independente) explica o contexto do encerramento do comitê. “No contexto atual da importância de ESG, entendo que a solução está no que é possível fazer aqui e agora. Observei companhias e bancos de investimentos que esperavam a influência dos investidores para aderir ao código. Investidores que esperavam que outros aderissem. Encontrei interlocutores bem-intencionados que achavam que a resposta estava no outro”, conta.
O CAF foi visto como uma iniciativa bastante positiva pelo mercado internacional e de certa forma à frente do seu tempo. “Não tenho dúvida de que influenciamos e muito o mercado brasileiro porque trouxemos a pauta do tratamento igualitário e equitativo entre acionistas para a discussão com CFOs, CEOs, conselhos, gestores, assets independentes, investidores locais e estrangeiros”, afirma Vanessa. Para a executiva, a autorregulação era o caminho para que as operações gerassem um círculo virtuoso ao mercado, já que os bancos de investimentos poderiam ter um deságio menor nas operações societárias, gerando um preço mais adequado às ações das companhias.
Na visão de Yazbek, os efeitos da semente que o CAF deixou, serão vistos no futuro. Porém, será necessário aguardar o mercado brasileiro passar por novos patamares de consolidação, após o alto volume de empresas se tornando companhias abertas. “Será um movimento natural que, no futuro, essas empresas comecem a participar de operações de reorganização societária caso o mercado fique aquecido e esse seja o caminho estrategicamente interessante. Ou se houver uma piora de cenário, e o movimento de fusões e aquisições se tornar essencial para a sobrevivência delas”, avalia.
Iniciativa avançada
Daniela da Costa Bulthuis, gestora para mercados emergentes da asset holandesa Robeco Asset Management, com foco em sustentabilidade e governança, lamentou o encerramento das atividades. Ela também avalia que o comitê fez um trabalho à frente do seu tempo, estando próximo da qualidade vista em iniciativas de mercados desenvolvidos, como o Takeover Panel de Londres.
Ela observa que um problema comum no Brasil é o pagamento do prêmio apenas para o controlador, sem a extensão aos minoritários, o que é legal do ponto de vista regulatório e técnico, mas não do ponto de vista de melhores práticas de governança – e residia neste ponto a importância do CAF. “O comitê deixou como semente o código, as boas práticas e o engajamento de todos os investidores que apoiaram a iniciativa. Uma forma de aproveitar esse trabalho poderia ser sua incorporação em uma futura revisão do Novo Mercado pela B3. Existe demanda para o investidor internacional vir, mas o ambiente no Brasil é hostil,” diz.
A gestora avalia que a ausência de melhores práticas de governança nas operações dos ativos aumenta a percepção de risco do mercado como um todo. O resultado é uma taxa de desconto maior para se investir no Brasil, porque se espera mais volatilidade pelo fato do acionista controlador, ter a capacidade de fazer uma operação para ter o controle, mesmo que o minoritário vote contra, porque está fora do alcance da regulação.
Trajetória
A sugestão de que o mercado se beneficiaria de uma entidade de autorregulação veio da então presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em 2009, Maria Helena Santana, e ganhou forma em um seminário da Amec, como lembra Walter Mendes, na época em que era presidente da entidade. Inicialmente com apoio da Amec e da Abrasca, o CAF passou a ser mantido financeiramente pela B3, Anbima e IBGC.
A inspiração foi o Takeover Panel, criado na Inglaterra em 1968 como uma entidade independente de autorregulação em processos de fusões e aquisições, e que passou a ser incorporado à legislação societária do país em 2006. A experiência bem-sucedida foi levada a todos os países da comunidade europeia e produziu reflexos nas práticas de mercado de países com influência inglesa, como Austrália e África do Sul.
A entidade foi criada para organizar as operações e garantir estabilidade no mercado de capitais, além de aumentar a segurança em relação aos direitos dos acionistas. “É interessante lembrar que a iniciativa foi criada por iniciativa do governo, que chamou as entidades do mercado de capitais e propôs que criassem um mecanismo de autorregulação. A entidade funcionou sob supervisão do Banco Central da Inglaterra por muitos anos, que avaliava o seu funcionamento”, conta Walter Mendes, que passou por uma imersão no mercado inglês na época em que foi Diretor Executivo do CAF, entre 2014 e 2016.
A inspiração no modelo inglês se consolidou no Brasil porque é o que propõe a prevenção de conflitos e reduz o litígio nas operações, considerando a ausência de especialização nesse tema pela Justiça brasileira. Nos Estados Unidos, por exemplo, o modelo escolhido é o oposto, o do litígio, mas os processos são analisados e julgados com rapidez porque há especialização nessa área.
Para Mendes, o que prejudicou a credibilidade do CAF foi a percepção de que o mercado não valorizava a adesão das empresas. “O investidor estrangeiro perguntava por que a B3 nunca aderiu ao código. A Anbima nunca incorporou o CAF em sua autorregulação para bancos de investimentos, em uma situação em que realizasse uma operação que não estava em nenhum segmento de governança da B3. O brasileiro reage a estímulo externo”, conclui.