Deixem o Xerife Trabalhar

Ninguém falou que seria fácil agradar a todos. Recorrentemente criticada por uma atuação supostamente insuficiente em muitos dos problemas de nosso mercado de capitais, a CVM também acaba sendo alvo de críticas pelas razões opostas. Ao tomar decisões corajosas que repelem atos nocivos aos investidores, acaba fustigada por críticas de diversas partes interessadas.

Uma das críticas concentra-se na questão das supostas “inovações”, ou seja, decisões que surpreendem o entendimento dos operadores jurídicos a respeito de algumas questões, ou mesmo que revertem precedentes anteriormente criados pelo próprio regulador.

Trata-se de crítica infundada. Na verdade, uma crítica perigosa. Lembra um pouco os argumentos jurídicos utilizados por agentes públicos implicados em operações policiais, ou nas infames ‘pedaladas fiscais’.  Segundo o argumento, as coisas “sempre foram assim” e, portanto, o regulador não poderia ‘inovar’, passando a sancionar postura que antes passava impune. O argumento principal seria o da segurança jurídica.

A segurança jurídica não pode servir de barreira para a evolução da interpretação das normas. Há de se ter em mente que é função do órgão regulador atualizar-se e manter-se atento às formas e subterfúgios eventualmente (ou até mesmo usualmente) utilizados pelos jurisdicionados para burlar o espírito das normas em vigor. O regulador não pode ser amarrado a visões do passado, enquanto a sociedade evolui a passos largos.

A postura que aqui podemos chamar de garantista implica em que cada “novidade” em decisões sancionadoras deva valer apenas para casos futuros, e não para o passado. Levada ao seu extremo, a postura torna completamente ineficaz a atuação regulatória e sancionadora. Uma determinada inovação somente estaria sujeita à sanção após uma manifestação do regulador sobre sua “nova” interpretação – legalizando-se tacitamente todos os atos pretéritos não enfrentados pelo “xerife”. Feito o “alerta”, os agentes parariam com o ato irregular.

Mas inventariam outros. Este é o grande problema. A postura resultaria numa relação de gato e rato entre sancionador e sancionados, que nunca pegaria ninguém. As leis se tornariam letras mortas, e os únicos beneficiados seriam os intermediários que teriam um enorme mercado para vender suas soluções “inovadoras” para bypassar leis e regulamentos. Ou seja, trata-se de um enorme “custo Brasil”, onde perde a sociedade e ganham os intermediários.

A situação é ainda mais clara no caso do direito societário. As leis 6.404 e 6.385 possuem forte inspiração no direito anglo-saxão. Apenas para citar dois exemplos, temos a figura dos deveres fiduciários, de diligência e de lealdade, que seriam virtualmente impossíveis de serem regulados de maneira eficaz sob o prisma exclusivo do direito continental europeu.

A tradição jurídica anglo-saxã, conhecida como common law, baseia-se fortemente nos usos e costumes, nas interpretações dos juízes e de reguladores – isto é, a jurisprudência – para sua evolução. Ela é, portanto, naturalmente aberta, sendo perfeitamente possível – na verdade essencial – que ao longo do tempo decisões jurídicas contradigam precedentes, refletindo assim a evolução da sociedade e a resposta do sancionador às inovações que tentem violar o espírito da lei.  E ninguém acusa o sistema judiciário americano ou inglês de insegurança jurídica.

Ainda que haja debates sobre punições decorrentes de revisões de jurisprudência (e não deveria, se o sancionador tiver um processo transparente de decisão e de modulação das sanções), o mesmo não pode ser dito em relação a questões não previamente enfrentadas pelo sancionador.

Um bom exemplo é o caso das aprovações de contas por entidades ligadas diretamente ao administrador, enfrentado recentemente pela CVM com a punição ao controlador que aprovou suas contas por este subterfúgio. Não encontramos nenhum julgado sobre este assunto, no que implica dizer que a CVM não mudou sua interpretação – apenas enfrentou um problema sobre o qual não havia se manifestado anteriormente.

É a mesma situação que vemos em outras decisões polêmicas do regulador. Recentemente, a CVM puniu fundos de pensão por votarem como minoritários em assembleias de companhias controladas por controlador comum. Foi criticada por inovar, quando apenas aplicou a lógica para que a lei fosse cumprida, modulando adequadamente sua decisão.

O erro da postura garantista aplicada ao mercado de capitais fica ainda mais evidente se pensarmos nos crimes de insider trading. Trata-se de tipo penal relativamente novo, com somente dois casos julgados até agora. Uma pesquisa sobre os julgados da CVM sobre o assunto revela uma profunda dificuldade de dar concretude ao mandato legal. A interpretação do regulador, portanto, está evoluindo. Isso significa que quando ela encontrar uma nova situação que considere ter “cruzado a linha” ela deva somente fazer um alerta e esperar a próxima? Claro que não. Se assim fizer, podemos garantir que nunca haverá alguém responsabilizado pelo crime de uso de informações privilegiadas no Brasil.

A crítica sobre a proibição de voto do administrador em relação às suas próprias contas também carece de uma base lógica. Uma das grandes dificuldades na evolução do nosso mercado de capitais é exatamente a confusão entre as diversas “caixinhas” que compõem o sistema de governança corporativa de uma empresa. Governança é um sistema de freios e contrapesos, e isso está refletido de maneira brilhante na nossa legislação societária (ela já falava em conselheiros externos em 1976). Se os órgãos da administração se confundem com a função de propriedade, jamais teremos companhias governadas de acordo com as melhores práticas. Um bom exemplo é a excrecência dos acordos de acionistas que incluem instruções de votos aos administradores com execução específica (por força do infeliz Artigo 118, Parágrafo 8º, incluído em nossa legislação por pressão de alguns controladores interessados exatamente em deturpar os freios e contrapesos). O mecanismo é condenado pela boa prática, como fica evidente no Código do IBGC e na Carta Diretriz número 1, publicada pelo mesmo instituto.

A lei desmonta se não houver uma estrutura adequada de freios e contrapesos. Por isso, nada mais natural do que induzir as companhias a construir essas estruturas adequadamente. Administradores administram e relatam suas contas. Proprietários deliberam sobre as mesmas. Não há confusão aqui. Alegar que a regra, se implementada, equivale a transferir o poder dos controladores para os minoritários é um argumento que confunde mais do que esclarece.

A lei acerta, portanto, ao proibir o voto do administrador na aprovação das próprias contas, e acerta também a CVM ao não permitir a óbvia farsa de se interpor estruturas 100% controladas pelo administrador para fazê-lo em seu lugar.

Mas seguramente existe um potencial de aprimoramento legal na questão de aprovação de contas: a questão da exoneração de responsabilidade dos administradores. Trata-se de uma idiossincrasia da legislação brasileira. De acordo com o artigo 134, parágrafo 3º da Lei das Sociedades Anônimas, a aprovação, sem reservas das contas implica da exoneração automática de responsabilidade dos administradores, salvo erro, dolo, fraude ou simulação.

O dispositivo pode ser considerado uma arma de destruição em massa do accountability em nossas empresas abertas. Em primeiro lugar, os grandes escândalos corporativos não são descobertos instantaneamente. Eles demoram a surtir seus efeitos, sua destruição de valor e, consequentemente, para alertar os investidores que talvez alguns administradores não tenham atendido plenamente os seus deveres de lealdade e diligência previstos nos Artigos 153 a 155 da mesma lei. Se decorrido este tempo os administradores puderem alegar que a aprovação do balanço os exime desses deveres, estamos transformando a lei em letra morta.

Os garantistas de plantão dirão que não: que a exoneração não se aplica nos casos de erro, dolo, fraude ou simulação. Mas, na vida real não é bem assim. Qualquer ação judicial que precise partir dessa discussão larga dos boxes e, com isso, condena-se à irrelevância. Os investidores não mobilizarão tempo e recursos para entrar no nosso já difícil sistema judiciário, para uma briga de décadas onde as cartas já foram dadas contra si, colocando elevadíssimos critérios para admitir a responsabilização.

O problema é exacerbado pela questão do absenteísmo, e da pouca importância dada pelos investidores à questão da aprovação de contas. Alguns advogados argumentam ainda que a aprovação das contas e das demonstrações financeiras são duas coisas diferentes, acrescentando complexidade ao assunto. E mais: existiriam a aprovação unânime, aprovação por maioria e uma “aprovação com reservas”, que ninguém sabe muito bem o que é.

Tudo isso conspira para tornar o dispositivo citado um problema muito grande para o mercado de capitais. É urgente que seja revisto, como sugeriu em artigo recente com muita propriedade o ex-presidente da CVM Marcelo Trindade.