Em pouco mais de uma década, mercado de crédito privado alcançou maturidade, profundidade e dinamismo, diz Fayga Delbem

Em pouco mais de uma década, o mercado de crédito privado no Brasil saiu de um estágio inicial de desenvolvimento, com a prática de buy and hold, para uma fase de maior dinamismo e maturidade.

Atuando há mais de 12 anos no setor, a gestora de portfólio de crédito da Itaú Asset e membro do conselho do CFA Society Brazil, Fayga Czerniakowski Delbem vivenciou todo o processo de aprofundamento desse mercado. Em entrevista exclusiva ao Panorama Amec, ela compartilha suas visões sobre o momento atual do segmento e avalia os próximos passos, em um cenário que mescla maior atratividade para a renda fixa e eventos de grande impacto.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

Panorama Amec: Como o mercado de crédito privado evoluiu na última década?

Fayga Czerniakowski Delbem, Gestora de Crédito da Itaú Asset e Membro do Conselho da CFA Society Brazil. Foto: Divulgação.

Fayga Czerniakowski Delbem: Em 2010, basicamente apenas as assets ligadas aos grandes bancos atuavam na gestão de fundos de crédito. Era um mercado mais concentrado, que majoritariamente operava créditos para instituições financeiras. Eram muito fortes nas emissões de CDBs e, em 2011, começou a emissão de letras financeiras. Não era o mercado que conhecemos atualmente, com a participação de assets independentes e outros tipos de players.

Panorama: Um grande gargalo do mercado brasileiro sempre foi a falta de um mercado secundário ativo. Como era o secundário nessa época?

FCD: Quase não existia uma dinâmica de mercado secundário, com operações usualmente mais curtas, porque não havia liquidez. Era muito comum termos ofertas de apenas de 2 ou 3 anos, no máximo 5 anos. Poucas empresas high grade acessavam o mercado de capitais. As negociações eram em percentual do CDI e não em CDI mais um prêmio como acontece hoje em dia. Existia demanda por ativos de crédito, mas não havia tantos emissores.

Panorama: E quando essa dinâmica começa a mudar?

FCD: Um movimento importante ocorreu no final de 2019. Tínhamos taxas de juros muito baixas e os investidores começaram a perceber que não adiantava mais receber 103% de um CDI muito baixo. Houve uma primeira crise, que chamamos de crise técnica, e vimos uma onda de resgate em alguns fundos de crédito. Nesse contexto, os gestores tiveram que vender os ativos e começamos a ver uma onda de reprecificação. O índice de spread de crédito, o Idex, era CDI + 0,70% antes desse estresse e sofreu um ajuste que o elevou para mais ou menos 1,30%.

Panorama: E como foi o comportamento desse mercado na pandemia?

FCD: No início de 2020 tínhamos baixíssima visibilidade em todas as classes de ativos. Não sabíamos o que poderíamos esperar, era algo novo e muito difícil para todo mundo. Todos os gestores sofreram muitos resgates e começaram a vender seus ativos, mas não havia compradores. Isso fez com que esse spread de crédito saltasse de cerca de CDI + 1,30% para CDI + 5,5% ou até superior a isso.

Panorama: E o que mudou a partir de então?

FCD: A reprecificação que surgiu em decorrência do sell-off observado na pandemia fez com que a classe de crédito pela primeira vez atraísse investidores diferentes: tesourarias de grandes bancos, fundos multimercados e até o Banco Central se estruturou para operar, se necessário, nesse mercado. Gradualmente começamos a ver uma estabilização. O gestor que precisava vender para pagar os resgates passou a encontrar compradores. Começamos uma janela que foi do segundo semestre de 2020 até pelo menos o segundo semestre de 2022, que eu chamo de um período de beta no mercado de crédito. Foi um período de fechamento e normalização desses spreads de crédito, porque entrou ali a compra marginal. A rentabilidade dos fundos se tornou muito atrativa e se iniciou um círculo virtuoso numa tendência de beta.

Panorama: E o que aconteceu depois da pandemia?

FCD: A partir do final de 2022, temos o que eu chamo de alfa, um mercado em que a seletividade se torna muito importante. Entramos em uma janela em que é fundamental escolher as empresas que queremos nos posicionar, os setores e as durations.

Panorama: E finalmente o mercado secundário ganhou maior tração, não é mesmo?

FCD: Sim, quando vimos a entrada de novos tipos de players, o principal vencedor foi o mercado secundário. Há 5 anos, ele negociava algo como 5 ou 6 bilhões de reais por mês. Atualmente estamos superando a marca de 30 bilhões de reais por mês. Quando você tem muito mais profundidade e dinamismo no mercado de crédito, você consegue investir em diferentes companhias e setores, porque o gestor não é mais obrigado a comprar um papel e carregar até o seu vencimento. Ele efetivamente consegue fazer o que chamamos de gestão ativa no crédito privado.

Panorama: Qual o impacto desse desenvolvimento na diversificação dos ativos e produtos?

FCD: Todos esses fatores permitem que você tenha apetite para diferentes tipos de risco de crédito. A indústria de fundos saiu de apenas produtos D+0 e D+1, de curtíssimo prazo, para fundos D+5, D+30, D+45 e até D+180. Surgiram também os fundos fechados em alguns casos.

Panorama: E como o setor tem se comportado diante de eventos recentes que provocam instabilidade?

FCD: Vejo um mercado de crédito muito maduro em resposta ao que vimos no primeiro trimestre de 2023. No dia 11 de janeiro, a Americanas divulgou inconsistências contábeis na companhia. O que aconteceria se isso tivesse ocorrido em 2019 ou 2020? Simplesmente teria um grupo de gestores muito preocupados tentando vender seus ativos e ninguém com capacidade para comprar. O que vimos no dia seguinte? Havia compradores e vendedores para a grande maioria dos ativos que tínhamos no mercado.

Naquela época, os spreads de crédito em geral eram negociados na casa de CDI + 1,90%. Começamos a ver compras em média a CDI + 3,5%, mas não ocorreram negociações, porque os vendedores não precisavam vender nessa magnitude de desvalorização, a qualquer preço. Eles não tinham mais aquela preocupação de fundos desajustados, com uma liquidez muito alta, com alocação indevida. Gradualmente, o preço se estabilizou em torno de algo como CDI + 2,20% em média. Ou seja, vimos um mercado bem controlado, com a participação de compradores e vendedores o tempo inteiro, que encontrou um novo equilíbrio de curto prazo e seguiu um fluxo relevante de resgates na indústria. Mostrou que está muito mais maduro e saudável.

Panorama: Qual a diferença entre a crise da Americanas com a preocupação com diversas companhias, como Light?

FCD: Diferente do caso (Americanas) que é isolado, nos outros cabia a análise detalhada de cada gestor e investidor. Como tínhamos muito mais gestores posicionados nessas outras companhias, houve um segundo movimento entre os gestores mais preocupados que aí, sim, venderam um pouco mais de crédito. Ou seja, ocorreu um segundo movimento de vendas. Sem dúvida há mais desdobramentos a acontecer, temos um mercado de crédito em constante desenvolvimento. Mas vemos hoje uma profundidade e maturidade muito melhor do que observamos antes da pandemia, fruto especialmente da entrada de novos players.

Panorama: Considerando que os juros ainda estão em níveis altos, o que você espera daqui para frente?

FCD: Primeiro ponto que vemos no contexto de juros elevados é o aumento da atratividade da classe de renda fixa como um todo. Entendemos também que existe outro ponto para ser monitorado, que é o quanto os juros elevados por muito tempo podem impactar efetivamente a despesa financeira das companhias. Nesse ponto, repito a importância da seletividade. Quando olhamos as nossas classes, fazemos cenários de estresse com diferentes níveis de taxas de juros. Entendemos que a classe de renda fixa segue muito atrativa nos patamares atuais. Mas, é muito importante nesse contexto que os analistas e gestores que estejam montando os portfólios de crédito selecionem companhias que tenham capacidade de estar bem posicionadas.

Panorama: Que tipos de empresas devem ser evitadas nesse cenário?

FCD: Há algumas companhias cuja despesa financeira compromete toda a geração de caixa. É delas que os gestores devem fugir em um momento como o atual. Gostamos de olhar três fatores: os fundamentos, o lado do técnico e o nível de preço. Em partes, acabamos de falar do lado técnico, a taxa de juros alta aumenta atratividade para renda fixa. Em termos de fundamento, olhamos para algumas companhias com passivos muito alongados, durations longas e muita liquidez. Então, a despeito do cenário macro mais desafiador, temos companhias com bons balanços para navegar diferentes cenários ao longo dos próximos anos. Por fim, em nível de preço, vemos hoje essa correção no mercado, na casa dos 100 bps, que faz com que tenhamos de atuar com muita seletividade.