Entrevista Emílio Carazzai: A realidade desvendará a procedência e a veracidade das promessas feitas no IPO

Com longa trajetória na gestão de empresas privadas e estatais, Emílio Carazzai analisa, em entrevista exclusiva para o Panorama Amec, os atuais desafios e problemas de governança das companhias. Consultor, ex-Presidente da Caixa Econômica Federal (1999-2002) e ex-Presidente do Conselho do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC (2016-2018), ele transmite sua visão sobre o funcionamento dos conselhos em cenário de pandemia e a importância da diversidade nos colegiados.

Em relação à nova onda de IPOs, Carazzai demonstra preocupação com a preparação das empresas que estão abrindo o capital. Ele questiona se as empresas terão condições de cumprir os requisitos para atender as exigências de participação na Bolsa. “Diga-se ademais que alguns casos crassos de despreparo são declinados pelos reguladores e o mercado no geral nem fica sabendo”, comenta em trecho da entrevista. Ele se mostra também cético quanto aos avanços na governança das empresas estatais, mesmo após o advento da Lei 13.303/2016, que ele classifica como “uma oportunidade perdida”.

Confira a seguir a entrevista na íntegra:

Qual sua visão sobre o papel do Conselho de Administração das companhias no cenário de pandemia?

Emílio Carazzai. Foto: Divulgação.

Em uma das minhas entrevistas gravadas pelo IBGC, ainda no início da pandemia, quando achávamos que tudo voltaria ao normal em junho passado, comentei que o primeiro efeito percebido da crise era a aceleração de tendências que já estavam presentes na vida dos profissionais e na gestão das empresas. Eu me referi principalmente à prontidão, a alteração da dinâmica e da logística dos conselhos. Quem pode imaginar que em plena pandemia, no maior choque sanitário e econômico da história contemporânea, os Conselhos poderiam manter as reuniões do calendário convencional? Os Conselhos estão sendo acionados com frequência extraordinária, e não apenas para se informar, mas para deliberar. Afinal, governança tem a ver com liderança. E liderança demanda conhecimento, experiência e sabedoria.

E como tem sido a relação dos Conselhos com o management das companhias nesse contexto de pandemia?

Em geral, a relação entre Conselho e gestão se estreitou durante a pandemia. Não quer dizer que o Conselho se meteu na operação, mas a diretoria executiva acionou muito mais o Conselho, na sua plenitude.

Um tema que ganhou ainda mais relevância na Pandemia foi o ESG. Como você avalia essa ascensão?

A certificação da empresa quanto ao seu desempenho ESG é uma aspiração social contundente e sem volta. As empresas que se derem mal nesses aspectos correrão o risco de perder a licença social para operar ou ao menos para continuar sob o controle dos acionistas que a levaram a delinquir. Essa é a tendência. E como toda tendência, haverá autênticos e simuladores; mas no fim do dia, a turbidez desaparecerá e a percepção de agentes de mercado e da sociedade em geral saberá distinguir o que é água do que é lodo.

No contexto de busca de aperfeiçoamento da governança das empresas, como fica a importância da formação do Conselho em termos de composição e diversidade?

O Conselho é o órgão supremo de governança da empresa. Portanto, além de ser o proprietário da estratégia, o conselho é onde culmina a liderança da empresa. A empresa precisa fazer uma avaliação formal e rigorosa a respeito de quais disciplinas são fundamentais para o seu sucesso. E estas disciplinas de conhecimento e sabedoria precisam estar representadas nos perfis que se sentam em volta à mesa do conselho. O tema da diversidade é importante porque enriquece o processo de discussão, avaliação e deliberação do conselho. É da natureza dos conselhos que os assuntos que chegam à sua apreciação sejam complexos, daí a necessidade de se poder apreciá-los mediante vários ângulos de abordagem.

Em ano de grandes mudanças, como o avanço tecnológico tem impactado o funcionamento das empresas e das instâncias de governança?

Há três tendências claras afetando os colegiados, sobretudo os Conselhos. Primeiro, a volatilidade dos mercados e as ameaças disruptivas. Todos os modelos de negócio estão sob constante ameaça. Segundo, as empresas vêm sendo geridas cada vez mais próximas de tempo real. Se você tem os dados, você não apenas pode, mas você tem de decidir. E terceiro, o enorme barateamento das plataformas de telecomunicações, permitindo as reuniões remotas. Estas três tendências geram uma nova e irreversível demanda sobre os conselhos e os colegiados de um modo geral.

Poderia dar algum exemplo?

No início da pandemia, o IBGC organizou a sua assembleia ordinária anual remotamente, com a participação de centenas de associados. Isto também está ocorrendo no âmbito das empresas, inclusive porque a regulação até se antecipou neste aspecto, ensejando que as assembleias também possam ocorrer por meio do comparecimento remoto.

E 2020 é um ano diferente também pelo apetite das empresas na abertura de capital. Como analisar a atual janela de IPOs e o perfil das empresas que estão em busca da abertura de capital?

Todas as janelas de IPOs, para usar o jargão, têm características que lhes são específicas. É o caso desta, que tem dois movimentos próprios: a migração de pessoas físicas da renda fixa para a Bolsa, e uma certa “ancoragem” dos bancos emissores, muitos dos quais também se beneficiaram da migração para a renda variável. Fundamentalmente, é um movimento saudável; o país deixa de ser um paraíso de rentistas dependentes de juros elevados. No entanto, como em todas as ondas, sempre há autênticos e controversos. A regulação de mercado no Brasil é positivamente diferenciada, sobretudo dentre os países de renda média. Mas a regulação em si nunca é perfeita. Primeiro, porque não é o agente regulador que elabora o quadro regulatório, ele apenas o aplica. Segundo, porque os agentes têm a preocupação de não exagerar na intervenção do funcionamento do mercado. E neste sentido sempre haverá descontentamento, de dois lados: os que querem mais, e os que querem menos intervenção. É uma dinâmica de equilíbrio instável.

E as empresas estão se preparando de maneira adequada para o IPO?

Com relação à preparação das empresas, é um momento de máxima transparência; fundamentalmente, a empresa oferece aquilo que o mercado chama de uma “história”. Para ser comprada, terá de ser crível para alguns investidores. Depois a realidade desvendará a procedência e a veracidade das promessas feitas na oferta. Inevitavelmente, há riscos. Diga-se, ademais, que alguns casos crassos de despreparo são declinados pelos reguladores e o mercado no geral nem fica sabendo.

As empresas passam por uma grande transformação em muito pouco tempo. Como você avalia essa mudança?

Quando uma empresa decide ir a mercado para captar capital mediante uma oferta pública de participação no seu patrimônio, ela altera profundamente a dinâmica da sua governança e da sua gestão. Em primeiro lugar, porque a regulação impõe um escrutínio que demanda a transparência máxima da empresa, e o processo da oferta em si exige uma prontidão extrema por parte dos órgãos de governança e gestão. A empresa ganha não apenas o aporte de capital, mas todo o aprendizado decorrente do duro e minudente questionamento imposto pelo mercado com respeito à sua estratégia, aos seus prognósticos, e à sua perpetuidade. É uma transformação visceral. Não é incomum que repercuta na necessidade de recomposição do conselho, na substituição de executivos, antes e depois, e no relacionamento com reguladores, agentes de mercado e stakeholders de um modo geral. A empresa mantém o CNPJ, mas jamais será a mesma.

Poderia comentar a evolução da governança das companhias estatais?

Minha opinião a respeito da governança das estatais não segue o “mainstream”, o sentimento convencional dos brasileiros a respeito das estatais. A sociedade brasileira e os seus parlamentares representantes são majoritariamente lenientes com as estatais. Ao arrepio do que foi inscrito no artigo 173 da Constituição. Sob uma interpretação séria e decente deste artigo, a maioria maciça das empresas opera inconstitucionalmente, o que não deveria acontecer. Portanto, a discussão da governança das estatais mascara a discussão mais profunda sobre a intervenção do estado para produzir bens e serviços a mercado.

A Lei de Governança das Estatais não ajudou a modificar essa situação? 

A maioria das estatais está capturada por interesses privados, já deixou de ser pública há muito tempo. Daí a infelicidade da Lei 13.303/2016, equivocadamente denominada de lei de governança das estatais. Aplicou um face-lifting em um rosto que nem deveria existir. E ainda malfeita. Uma oportunidade perdida. A despeito de alguns avanços, o ceticismo com que recebemos a lei tem se revelado real. Foi deveras uma oportunidade perdida. Poderíamos ter avançado muito mais.