Entrevista Lucio Capelletto: Transformações e desafios para fundos de pensão no Brasil
Depois de alcançar patrimônio próximo a R$ 1 trilhão em dezembro do ano passado, o impacto da crise decorrente da pandemia de Covid-19 também atingiu os fundos de pensão no Brasil com intensidade. De maneira agregada, os déficits acumulados que praticamente haviam desaparecido no fechamento de 2019, voltaram para a pauta do setor. Rapidamente, porém, as carteiras de investimentos das fundações reagiram nos meses seguintes e o desequilíbrio dos planos foi se reduzindo, conforme comenta o Diretor-Superintendente da Previc (Superintendência Nacional de Previdência Complementar), Lucio Capelletto, em entrevista exclusiva ao Panorama Amec.
Os esforços de aperfeiçoamento regulatório e de governança do setor realizados nos últimos anos constituíram um fator que contribuiu para a positiva assimilação dos impactos da crise, sem grandes problemas de liquidez ou solvência. O titular da Previc repassa na entrevista uma série de mudanças na regulação dos fundos de pensão desenvolvidos pela Autarquia, e fala sobre os próximos passos do órgão, revelando projeto de criação de sistema de rating para aprimorar a fiscalização das fundações.
Em cenário de juros cada vez mais reduzidos, a gestão dos investimentos dos fundos, explica Capelletto, deve continuar apontando para maior diversificação. Além disso, a mudança de regras na contabilização de títulos de renda fixa, com orientação para a marcação a mercado, e uma proposta de maior flexibilização para os resgates de recursos de planos de contribuição definida, reforçam a tendência de se buscar uma gestão mais ativa nas carteiras. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Panorama Amec – Poderia comentar a situação das carteiras de investimentos e principais indicadores dos fundos de pensão no cenário atual?
Lucio Capelletto – O sistema de fundos havia alcançado patrimônio próximo a R$ 1 trilhão no final do ano passado, com boa situação de solvência e liquidez. No final de março deste ano chegaram a pandemia e a consequente crise, que provocaram forte impacto inicial, devido à queda abrupta da bolsa e demais ativos. Isso trouxe um efeito para todo o sistema. Outro fator importante diz respeito às taxas de juros, processo que desenhava desde 2016, mas que agora se intensificou.
Houve aumento dos déficits dos fundos? Já ocorreu alguma recuperação desde março?
O sistema estava bastante equilibrado no final de 2019, tendo registrado primeiro resultado agregado positivo [déficit menos superávits] desde 2015. Com o impacto da crise, o sistema voltou a registrar um déficit significativo a partir de março. Mas verificamos significativa recuperação a partir de abril. O resultado agregado em torno de R$ 54 bilhões negativos em março reduziu para R$ 22 bilhões negativos em junho. E se olharmos julho, que ainda não está fechado, os dados preliminares mostram que a recuperação continuou, com sensível melhora. Mantida a recuperação, é possível que não haverá equacionamento de déficits no final do ano.
Houve venda de ativos em condições desfavoráveis durante a crise?
A situação de liquidez era bastante favorável antes da crise e mantém níveis suficientes para pagar os compromissos nos próximos 24 meses. Além dos recursos de caixa, também consideramos os cupons dos títulos públicos das carteiras. Verificamos que os fundos detêm uma grande carteira de títulos públicos avaliada em R$ 475 bilhões. Esses ativos geram receitas anuais em torno de 5%, o que dá mais de R$ 20 bilhões. Isso faz parte da capacidade de pagamento de benefícios. Somando os valores em caixa, a liquidez está bastante satisfatória. Assim, os fundos não tiveram que vender ativos com valores depreciados.
Outro desafio continua sendo o de superar as metas atuariais dos fundos de pensão em cenário de juros reduzidos, não é mesmo?
O cenário de juros baixos evidencia uma tendência de maior diversificação dos ativos. Isso estava na política de investimentos em dezembro de 2019. As taxas de juros apresentam redução desde 2016, com maior acentuação no período recente e devem permanecer em patamar baixo. A inflação está baixa e controlada. Assim, as fundações devem fazer o dever de casa e reavaliar suas necessidades de diversificação. A taxa atuarial média dos planos de benefício definido é 4,70%. Se a Selic se mantiver em torno de 2%, os fundos terão de buscar outros ativos para compatibilizar a rentabilidade dos ativos com as obrigações previdenciárias, mantida a taxa atuarial.
Tudo isso aponta para uma maior diversificação, não é mesmo?
Isto é uma tendência, conforme pode ser observado pelo crescimento em renda variável, que atingiu 21% dos investimentos ao final de 2019. Igualmente, outros ativos como exterior apresentaram crescimento. Nesse sentido, os fundos de pensão estão se preparando, analisando as diferentes classes de ativos para ampliar o leque de investimentos e promover maior diversificação.
Será necessário mudar as regras de investimentos dos fundos que estão na Resolução CMN 4.661/2018?
As alterações na Resolução são avaliadas tecnicamente antes do encaminhamento às instâncias decisórias. Por exemplo, houve a discussão no âmbito do IMK [Iniciativa do Mercado de Capitais], entre setembro e dezembro de 2019, a possibilidade de permitir para investimentos em debêntures de sociedades anônimas fechadas, que preencham requisitos de governança e porte. Em princípio, seriam elegíveis 600 a 700 empresas, com faturamento significativo, demonstrações financeiras auditadas e publicadas etc.
Estão estudando a ampliação do limite de investimentos no exterior?
Estamos avaliando a elevação de limites para o investimento no exterior. Os estudos apontam que o nível pode ser equiparado ao ramo segurador, que adota 20% de limite. Mas é bom lembrar sempre que a decisão final não é da Previc. Preparamos análise técnica e discutimos dentro do Ministério da Economia. A decisão final é do Conselho Monetário Nacional. E como estamos passando por uma crise, tem outras prioridades em discussão.
A Resolução CMN 4.661/2018 trouxe importante avanço na observação das práticas ESG pelos fundos, tema que está em alta neste momento. Poderia comentar?
Claro, a Resolução inovou ao trazer a atenção à pauta de sustentabilidade, o que é muito atual. Isso deve ser uma preocupação em termos de alocação de recursos pelas fundações. É claro que é uma curva de aprendizado, é um processo.
Quais outras mudanças a Previc e o Ministério estão preparando para o setor?
Buscamos facultar aos fundos de pensão a possibilidade de permitir o resgate parcial de recursos acumulados pelos participantes de planos na modalidade contribuição definida (CD). Pode ser entendida como uma antecipação ao benefício. Hoje as regras de planos patrocinados são muito rígidas. Não há possibilidade de resgate a não ser que se perca o vínculo empregatício. Até mesmo na crise agora, há situações em que os participantes enfrentam necessidades de acessar os recursos de seu plano e o resgate não é possível. Ao não ter acesso aos recursos, mesmo em momentos excepcionais, o participante acaba tendo de recorrer muitas vezes a empréstimos, pagando juros.
A mudança dessa regra aponta para uma maior convergência dos fundos abertos e fechados?
Sim. Esta alteração aproxima dos planos oferecidos pelas entidades abertas. A intenção é buscar maior flexibilização para os planos do segmento fechado, hoje mais engessados.
E como se dará esse resgate dos recursos?
Como disse, a ideia é facultar aos fundos de pensão a possibilidade de permitir o resgate parcial de recursos acumulados pelos participantes de planos CD. Queremos preservar o caráter previdenciário. Imaginamos que deve ser utilizado em situações que a pessoa realmente precise. O participante deverá ter consciência que estará reduzindo sua reserva para aposentadoria. Então, será algo em situação de necessidade real e não para o consumo. Teremos regras claras, com valores percentuais e prazos de acumulação que ainda estamos avaliando.
Houve recentemente uma mudança nas regras de marcação dos títulos de renda fixa para os fundos de pensão. Poderia explicar?
O Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC) aprovou a Resolução n. 37, que traz novas regras para a contabilização dos títulos, privilegiando a marcação a mercado. Esse tipo de marcação evita a transferência de riqueza entre participantes. A nova regra propicia maior acurácia no reconhecimento e na mensuração dos valores dos ativos contabilmente, quando comparada com a marcação na curva. Com a marcação a mercado, é possível mensurar com mais exatidão os valores dos ativos, fundamental nos planos CD. As novas regras valerão a partir de setembro.
No caso de se permitir maior flexibilidade para os resgates de planos CD, a marcação a mercado ganha maior importância, não é mesmo?
Justamente. A marcação a mercado ganha importância maior caso seja implementada a possibilidade de resgate no plano. Na marcação na curva, salvo quando o valor de mercado fosse igual, haveria alguém com ganho e outro com perda. A regra então está coerente com essa possibilidade de resgate parcial. Também nos casos de cisão e reestruturação de planos, quando ocorre transferência de recursos de um fundo para outro, a marcação a mercado é a mais apropriada.
Como poderia resumir o esforço para o aperfeiçoamento da governança do setor, incluindo o papel de supervisão prudencial e a fiscalização desempenhados pela Previc?
A minha cessão do Banco Central do Brasil à Previc ocorreu em 2017 e tive a oportunidade de participar do processo de mudança do arcabouço regulatório. Desde a criação da norma de proporcionalidade para as Entidades Sistemicamente Importantes (ESI), no início de 2017, do Comitê Estratégico de Supervisão (COES) e do próprio Relatório de Estabilidade da Previdência Complementar (REP). Participamos da elaboração da Resolução CMN 4.661/2018 e avançamos muito na regulação. Agora, além de continuar o aprimoramento da regulação, estamos implementando melhoramentos no processo de supervisão, especificamente nos processos de monitoramento e de fiscalização, e também de licenciamento, simplificando e automatizando os processos.
Quais são os próximos passos?
Estamos elaborando um sistema de avaliação de riscos e controles das entidades, com vistas à atribuição de nota (rating) que expresse a visão do supervisor sobre a situação da entidade. Assim, cada entidade terá uma nota em termos de riscos e controles. Isso será estruturado com base na avaliação quantitativa efetuada pelo monitoramento, composta por um grupo de indicadores calculados utilizando informações contábeis, de investimentos e atuariais, e na avaliação qualitativa dos riscos e controles, efetuada pela fiscalização. A composição das avaliações quantitativa e qualitativa resultará na nota final, que será apresentada aos órgãos estatutários das entidades.
E como esse sistema de rating será utilizado na fiscalização?
O processo de avaliação em implementação permitirá conhecer a situação de cada entidade de forma contínua e tempestiva, inclusive com devolutivas às entidades. Permitirá também calibrar a utilização dos recursos pela supervisão, mediante a classificação de todas as notas em uma matriz de riscos, de acordo com a situação de cada plano e entidade. Independentemente da avaliação dos riscos e controles, o monitoramento será contínuo.
Ainda nesse processo de mudanças para o setor, poderia de citar outras iniciativas?
A lista é extensa. Além de outras propostas regulatórias e aprimoramentos em processos de licenciamento e de supervisão, apresentadas na 5ª edição do REP, recentemente publicada, cabe-se destacar a Instrução Normativa nº 17, de 13 de setembro de 2019, que regulamentou a Câmara de Mediação Conciliação e Arbitragem. A Câmara foi recriada para justamente evitar a judicialização dos conflitos no setor, e tem se mostrado muito útil nessas negociações. Percebemos ganho na celeridade no processo de resolução de conflitos.