Entrevista Marcelo Trindade: Gestores independentes têm papel de destaque nas ofertas públicas

Com a experiência de ter vivido a onda anterior de IPOs (ofertas públicas iniciais) na posição de Presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Marcelo Trindade consegue analisar o momento atual de forte aquecimento do mercado de capitais como poucos. Para o advogado e professor da PUC-RJ, os gestores independentes e demais investidores institucionais desempenham um papel importante para exigir melhores condições de governança das companhias.

“A CVM não consegue acompanhar os problemas por dentro das companhias. O papel dos institucionais é mais importante porque eles têm mais capacidade e experiência para avaliar melhor a qualidade das informações e dos administradores”, diz em trecho da entrevista concedida com exclusividade ao Panorama Amec. Ele destaca o papel dos gestores independentes que têm atuado como âncoras de diversas operações de IPOs. “O gestor tem uma capacidade muito maior que o regulador de olhar no olho do administrador”, comenta em outro trecho. Confira a entrevista na íntegra a seguir:

Marcelo Trindade.

Como você analisa o cenário atual para o mercado de capitais?

Estamos vivendo um certo paradoxo desde o ano passado. E o cenário se repete neste ano, embora com menos intensidade. Estamos em um momento gravíssimo para a economia e a pandemia e, por outro lado, de grande sucesso para o mercado de capitais por conta de fatores macroeconômicos, principalmente por causa das taxas de juros muito comprimidas. Isso incentiva o investimento no mercado de capitais.

E quais são os motores que estão impulsionando o mercado?

Percebemos uma ampliação do acesso dos investidores pessoas físicas. Os dados são impressionantes, em relação aos mais jovens. Em termos de volume, ainda são os mais velhos os que possuem os maiores recursos. Mas em termos de número de contas, os mais jovens assumiram a liderança. Tudo isso conjugado com uma onda de novas companhias de menor porte abrindo o capital. Vemos novas companhias ligadas aos setores de tecnologia e inovação. Ou empresas que usam inovação e tecnologia em setores tradicionais. Essa combinação de juventude tanto do ponto de vista da demanda quanto da oferta, é uma novidade espetacular.

Poderia explicar a ampliação do número de investidores da Bolsa?

É um número muito grande de pessoas físicas entrando na Bolsa. E o segmento que atende essas pessoas também está em grande expansão. Temos visto a XP, o BTG Pactual e outros, todos investindo muito na pessoa física, todos oferecendo produtos mais sofisticados, com maior risco. São produtos também com maior perspectiva de retorno. Isso é muito alvissareiro. O Brasil sempre teve um problema do ponto de vista do crescimento econômico que foi o baixo nível de poupança e a dependência do sistema tradicional de remuneração financeira, dos bancos. O brasileiro ficou acostumado com inflação alta por muitos anos, depois ficaram taxas de juros altas depois que a inflação baixou.

Poderia traçar um paralelo entre a atual onda de IPOS e a fase anterior de 2004 a 2007?

A última vez que tínhamos visto um movimento muito intenso de abertura de capital, que começou em 2004 com a Natura, que foi um marco do mercado. Pouco depois já tínhamos mais de 100 companhias no Novo Mercado. A diferença para o momento atual é que naquela época tínhamos uma grande estabilidade política. O governo tinha mantido a política econômica anterior. Tinha mantido o tripé macroeconômico para o mercado brasileiro. Isso de fato transmitiu uma sensação de estabilidade. Hoje temos o Brasil em uma situação muito mais complicada do ponto de vista político e econômico. Temos a pandemia e uma percepção internacional muito ruim para o Brasil em vários sentidos, sobretudo na questão ambiental. É realmente surpreendente que o mercado esteja tão ativo mesmo em face dessas dificuldades. E a razão passa por essa conjuntura de necessidade de retorno, atitude dos investidores e força do empresariado.

Quais os pontos de atenção decorrentes da corrida pelos IPOs?

É natural quando ocorre um “boom” muito intenso, é normal que se tenha menos qualidade. Mas isso faz parte do negócio. As companhias podem fracassar. Algumas dão certo e outras não. Algumas abrem o capital e conseguem entregar resultado. E outras não conseguem, por razão de seus negócios. É bom que os investidores se eduquem também quando perdem. O mercado de capitais é feito de ganhos e de perdas. Perder ensina a estudar mais, a conhecer mais. Mas uma coisa é perder porque o negócio foi mal. Outra coisa é perder porque houve uma falha de governança.

Poderia dar exemplos sobre falhas de governança?

Não estou considerando as fraudes. Porque fraude pode acontecer em vários cenários, até em casos de boa governança. O fraudador consegue se esconder até em organizações com bons controles. Mas é muito importante que a qualidade da informação e da administração da companhia atendam aos parâmetros da lei. E isso não é fácil, é muito custoso ser uma companhia aberta. É diferente ser uma empresa fechada, onde se conversa mais livremente com os sócios.

Como evitar problemas de governança das companhias?

Acredito que isso não cabe exclusivamente ao regulador, à CVM [Comissão de Valores Mobiliários], que quase sempre atua “ex-post” nestes casos, ou seja, depois que o problema acontece. A CVM não consegue acompanhar os problemas por dentro das companhias. Aí entra o papel dos investidores institucionais e as pessoas físicas. Mas o papel dos institucionais é mais importante porque eles têm mais capacidade e experiência para avaliar melhor a qualidade das informações e dos administradores. Portanto, é muito importante que os institucionais façam seu papel de seleção e não invistam de qualquer maneira.

Pensando nessa capacidade dos gestores no acompanhamento das companhias investidas, como você avalia a importância do engajamento entre as partes?

Os gestores fiscalizam muito bem o que é o mercado. Eles estão alinhados e dependem dos resultados para ganhar mais. Eles recebem taxas de performance se houver maiores ganhos, então, devem se esmerar nessas atividades. Isso gera melhores resultados que uma atividade meramente regulatória. O gestor tem uma capacidade muito maior que o regulador de olhar no olho do administrador. Uma boa empresa depende de uma pessoa qualificada e honesta para tocar sua administração. E isso só se consegue perceber o dia a dia, ao vivo, realizando uma due diligence para avaliar os investimentos.

Então, um caminho seria o de fortalecer a autorregulação?

Acredito que o Brasil seja um exemplo de autorregulação. A Bolsa é um exemplo. Para atuar como Bolsa, é necessário criar todo um conjunto de autorregulação senão não consegue manter a licença de Bolsa, para manter os participantes de mercado. Mas o Brasil tem outro tipo de autorregulação, que é a voluntária, através de entidades como a Anbima e a Amec, que são casos de sucesso. A Anbima, por exemplo, conseguiu que o regulador, mesmo sem uma autorização legal, reconhecesse a atuação da associação como um atalho para o aperfeiçoamento da governança. Por exemplo, quem obtém o selo da Anbima, tem algumas facilidades na CVM.