Entrevista: Otaviano Canuto
Apesar da euforia dos mercados acionários, o ritmo da recuperação da economia mundial ainda apresenta incertezas. Uma nova onda de contágio da Covid-19, ainda que não deva trazer de volta grandes restrições de mobilidade, podem continuar comprometendo a retomada das atividades econômicas em diversos setores e regiões. Essa é a visão do ex-Vice Presidente do Banco Mundial e ex-Diretor Executivo do FMI, Otaviano Canuto, que falou com exclusividade para o Panorama Amec.
Se a perspectiva para a retomada da economia mundial ainda tem uma boa dose de incerteza, os riscos para o Brasil continuam em patamares muito mais altos. A repercussão negativa do desmatamento e queimadas na Amazônia e as dúvidas quanto à manutenção do teto dos gastos e da trajetória de ajuste fiscal são fatores que estão elevando o prêmio de risco do país.
Atualmente Membro sênior do Policy Center for the New South, e Principal do Center for Macroeconomics and Development, Canuto vive atualmente em Washington, DC. Confira a seguir os principais trechos da entrevista:
A esta altura, como avalia a recuperação da economia mundial?
Existe ainda um grau de incerteza alto que vem da dimensão sanitária da crise. É uma variável que é difícil de ser incorporada pelos economistas. Agora mesmo, estamos assistindo novas ondas e o retorno de algumas restrições na Europa. Há resistências políticas a novas restrições de mobilidade. O ritmo de contágio ainda é alto nos EUA em diversas regiões. Mesmo sem existir restrições legais para a mobilidade, as próprias pessoas irão se impondo restrições próprias. E isso produz forte impacto em alguns setores.
Sua perspectiva de recuperação é mais pessimista?
Houve recuperação parcial sobre a atividade industrial. Muitos se empolgaram com a recuperação em “V’, com a perspectiva de retorno à trajetória anterior. Agora já se percebe que a recuperação não será em “V”, mesmo na China, onde o controle da pandemia foi mais eficaz. Há uma demanda reprimida, porém vários setores não irão recuperar o que foi perdido. Ninguém irá a um restaurante três vezes por dia porque não foi na pandemia.
E como será a recuperação nos diferentes setores da economia mundial?
Os únicos que estão indo bem são o setor de tecnologia e lazer doméstico. Muitos setores continuam sofrendo com a pandemia, turismo, shows, restaurantes, e muitos outros continuam fortemente impactados. Acredito que o formato para a recuperação está mais para a forma de uma raiz quadrada ou do símbolo da Nike.
Em termos de políticas econômicas, qual sua avaliação sobre como os países estão enfrentando a pandemia no mundo?
Um componente importante para análise tem sido o papel das políticas públicas para achatar a curva de recessão. As políticas variaram muito nos países. No Brasil e no Peru houve um peso maior para a transferência de renda para a população. No Chile, a ênfase foi o crédito para empresas. E o México não fez quase nada, por isso, a economia é uma das piores na pandemia. No Brasil, o auxílio emergencial provocou uma queda menor para o PIB que o esperado inicialmente.
Temos acompanhado a queda vertiginosa dos juros mundiais em busca de estímulos. Nesse contexto, como avalia a atuação do FED?
Dois anos atrás o FED levantou os juros mesmo sem sinal de inflação com a intenção de apontar para a normalização da política monetária. É verdade que no ano passado, Jerome Powell deixou de fazer o desmonte do afrouxamento quantitativo. Vimos o impacto no mercado secundário de dívida privada. O fato é que em março, quando os mercados acordaram para a Covid-19, dada a magnitude do choque, houve a corrida para o Tesouro americano. Saíram US$ 100 bilhões dos mercados emergentes. O FED reagiu à altura. Criou linhas de comunicação direta para além dos bancos, para instituições não bancárias.
Diante de tantas incertezas no lado da economia real, não seria um contrassenso as fortes valorizações das bolsas nos principais mercados? Por que isso está ocorrendo?
É importante separar a euforia dos ativos financeiros da recuperação real da economia. As ações de Tesla, empresas de saúde, Amazon, Google estão bombando, tudo bem, mas as cadeias de restaurantes e hotelaria continuam sofrendo. O índice agregado de ações está subindo, mas não quer dizer que a economia está acompanhando. Será que o mercado acionário está sofrendo de esquizofrenia? A resposta não é fácil. Uma análise do BIS traz esse questionamento ao dizer “Os mercados sobem a despeito da recuperação econômica fraca”. Isso é reflexo da política monetária do FED.
E nesse otimismo com o mercado acionário, como está o olhar do investidor estrangeiro sobre o Brasil?
O termômetro para olhar isso é fluxo de saída líquida de dinheiro na balança de pagamentos, que foi acentuada no início da pandemia. Agora uma parte dos recursos voltou para os emergentes, mas não foi tudo e não foi de maneira uniforme. A Bolsa de Nova York continua subindo. A taxa de câmbio dos países emergentes voltou, mas no Brasil não voltou. A Bolsa brasileira se recuperou e tem fatores domésticos para isso. Tem fatores benignos ou malignos. Os prêmios de rendimento dos papéis da dívida pública desapareceram e isso é benigno. A questão é que o capital estrangeiro que ganhava com esses prêmios saiu e não tem sido compensado por outros fluxos.
E no caso brasileiro, o que mais preocupa?
No nosso caso, o desmatamento da Floresta Amazônica está jogando contra. Em uma economia baseada no baixo carbono, as queimadas representam uma contribuição muito negativa com forte repercussão. A ação do governo brasileiro parece reforçar as ações para permitir o desmatamento. Por mais que o [Hamilton] Mourão tente amenizar, o dano está sendo feito. Tem um componente negativo para o país. A imagem e a percepção de risco do país foi piorando. Isso tudo dá margem para ações protecionistas de outros países e mercados. A produção brasileira tem menos espaço em várias regiões onde o Brasil é competidor.
E até que ponto as contas públicas são um empecilho?
Na dimensão fiscal, o desafio de manter o teto dos gastos foi aumentando com a pandemia. O sistema de proteção social tende a crescer. Quando a pandemia chegou estávamos em um lento processo de ajuste fiscal. Ainda estávamos tentando sair da profunda recessão que atravessamos nos últimos anos. O teto de gastos é uma camisa de força para um paciente que sofre de obesidade mórbida.
Como se manifesta essa “obesidade”?
O aumento de gastos públicos é um problema que vem se agravando há alguns anos. Entre 1992 e 2014, os gastos subiram em média 6% ao ano acima da inflação. Quando em 2014 houve queda na arrecadação, daí o problema ficou evidente. Um estudo do Banco Mundial apontava que obviamente tinha de se cortar na Previdência. Outro ponto de cortes era o de subsídios e isenções tarifárias, que representam 4,5% do PIB. Tinha de se passar a limpo os pontos de corte. O terceiro ponto são os salários do setor público. É um sistema inflado e desigual. Há dificuldades para se cortar aí no ritmo que seria necessário. E a Reforma da Previdência que foi aprovada no ano passado terá efeitos ao longo do tempo.
Há como manter o teto dos gastos para os próximos anos?
O teto dos gastos permite um ajuste gradual bem percebido. Se o Brasil crescesse 2% a 2,5% por ano, o teto do gasto permite uma melhora de 0,5% do PIB ano após ano. Isso é um ajuste gradual e sustentável. A questão é que precisa também de uma virada do saldo primário de 5 pontos percentuais do PIB em 10 anos e de uma virada na trajetória da dívida pública. O problema é que se começou a discutir a Reforma Administrativa no início do ano passado, mas não se conseguiu avançar. E tudo indica que não sairá neste ano. Então, a obesidade vai continuar.
E como isso afeta a percepção de risco do país?
Os juros mais longos estão bem mais altos que em agosto. Eles refletem o receio de que o teto de gastos seja abolido. Temos dois cenários possíveis no ano que vem. Com o aumento dos prêmios de risco, ocorre o aumento do custo da dívida pública que entra em trajetória explosiva. Outro cenário mais otimista com a manutenção do teto, com a utilização de gatilhos.