Habemus CAF
Depois de mais de quatro anos de negociações, nasce nas próximas semanas o Comitê de Fusões e Aquisições (CAF) – popularmente chamado de Take Over Panel Brasileiro. Embora dificilmente a polícia venha a ter problemas com os excessos nas ruas em comemoração ao feito, o momento deve(ria) ser alegremente celebrado por todos aqueles que desejam um mercado de capitais mais saudável. Se atingir o seu potencial, o CAF pode se tornar tão importante para o país como foi a criação do Novo Mercado, 12 anos atrás.
A Amec orgulha-se de participar desta iniciativa desde a sua origem. Pode-se dizer que uma das primeiras plataformas de debates sobre o projeto foi o 2º Seminário Amec, que aconteceu em 2009. Naquele ano, a Amec trouxe ao país representantes dos Take Over Panels inglês e australiano, que dividiram com os participantes as experiências em suas jurisdições. A ideia é que um órgão privado, de adesão voluntária, pode se tornar um importante filtro julgador de determinadas transações societárias, envolvendo empresas abertas, com o intuito de garantir transparência e equidade para todos os investidores.
A necessidade parte da dificuldade prática do nosso regulador (CVM) e do Judiciário em detectar e aferir determinadas características necessariamente subjetivas de complexas transações societárias. Assim, a despeito das tentativas da CVM (tais como o Parecer de Orientação 35), o anúncio de uma reestruturação societária ainda é uma espada sobre a cabeça dos investidores, haja vista que nosso ambiente legal e regulatório ainda permite que muitas dessas transações – ainda que formalmente dentro das regras – efetuem transferências patrimoniais e de valores escandalosas, comprometendo assim a taxa de retorno dos investidores e consequentemente a credibilidade de nosso mercado de capitais.
O CAF nasce como fruto do esforço da CVM e de quatro entidades de mercado – além da Amec, são fundadores a Anbima, BMF Bovespa e o IBGC. Seu objetivo primordial aparece já na introdução do Código de Autorregulação (que contém as regras do novo órgão): “assegurar, entre outros princípios, o tratamento equitativo e igualitário dos acionistas”. Na verdade, essa poderia ser a única frase do Código.
Claro – a vida não é simples assim. É por isso que o Código traz 110 páginas. Mas sua essência pode e DEVE ser entendida a partir da poderosa frase citada acima. Isso porque o mesmo documento assinala que o CAF deve “privilegiar o atendimento aos princípios em relação às regras propriamente ditas”. Ou seja, se o CAF realmente funcionar, aquela ideia de atender às formalidades da lei enquanto se frita os investidores em óleo quente estará com os dias contados. Trata-se de um conceito revolucionário, particularmente num país viciado em formalismo jurídico como é o caso do Brasil – e que pode ser especialmente importante na regulação de atos tão ricos e complexos como reestruturações societárias.
A CVM já fixou, inclusive, parâmetros para o estabelecimento de convênio com o CAF de modo a conferir às operações analisadas pelo órgão presunção de legalidade. Trata-se de um incentivo poderoso para que as empresas adiram à nova estrutura.
Mas o principal incentivo, particularmente na primeira infância do CAF vai muito além. Alguém se lembra de uma novata empresa de concessões rodoviárias, que inovou ao se tornar a primeira a abrir seu capital no Novo Mercado? A então desconhecida CCR apostou no então desconhecido Novo Mercado e ambos são hoje sinônimos de sucesso em suas áreas: a CCR trouxe retornos totais reais acima de 40% a.a. para seus acionistas, e o Novo Mercado ficou reconhecido como uma das mais bem sucedidas experiências de inovação em mercado de capitais no mundo. Quem disse que a oportunidade não bate duas vezes na mesma porta?
É claro que o CAF não tem a pretensão de resolver todos os problemas da noite para o dia. As empresas boas continuarão desenhando suas transações segundo os princípios de equidade que o CAF esposa – como, por exemplo, a própria CCR quando adquiriu os aeroportos de seus acionistas controladores. E algumas empresas ruins continuarão tentando expropriar seus acionistas através de tenebrosas transações. Mas a adesão voluntária ao CAF sinaliza, no mínimo, aonde a empresa quer chegar. Principalmente porque – ao contrário de outras tentativas de autorregulação – o CAF não é umcheck list. Ele envolve uma análise mais qualitativa das transações, o que é uma consequência direta do seu caráter baseado em princípios.
Podemos ver transações injustas com o selo do CAF? Possivelmente sim. Esperemos que sejam raras, mas repetimos que não se pode esperar a solução de todos os problemas. É o próprio CAF que deverá servir como guardião da sua reputação. Se ele for identificado com transações equitativas, céleres e transparentes, empresas e investidores valorizarão sua opinião, transformando-o em referência na preservação dos direitos dos acionistas, capaz de agregar substancial valor às companhias aderentes às suas regras. Caso contrário, ele irá condenar-se à irrelevância ao longo do tempo.
A Amec deposita suas fichas no sucesso do CAF. E o faz com base em três fatores fundamentais. Primeiramente, o Código de Autorregulação – fruto de debates aguerridos entre os próprios fundadores – reúne características que permitem as melhores expectativas. A Amec sozinha provavelmente teria escrito um Código diferente. Mas, talvez por isso mesmo ele não teria a mesma força de um documento criado a oito mãos. Cada uma das partes envolvidas cedeu em pontos importantes que eram caros a outras partes. É precisamente este o resultado de um colegiado com diversidade: cada um traz a sua visão do problema, e o resultado, somatório dessas visões, tende a ser mais equilibrado e passível de confiança por um maior número de destinatários.
A segunda razão é a capacidade de atualização do CAF. Como vimos em 2010, o Novo Mercado possui um processo de atualização de regras altamente restritivo – o que impede muitas alterações e evoluções importantes. Flexibilidade para manter-se atualizado é fundamental para qualquer documento que faça referência a práticas de governança corporativa – vide exemplo do Código do IBGC, que já está em sua quarta edição. Os próprios membros do CAF poderão atualizar o Código, que incluirá uma cláusula deopt out para as empresas aderentes que não concordem com as mudanças. Assim, além de permitir a atualização, a regra faz com que as próprias empresas hesitem em rejeitar as mudanças, uma vez que odefault é a permanência do órgão.
Por último, a Amec tem muita fé na capacidade, isenção e visão das pessoas que estão sendo convidadas para formar o primeiro colegiado do CAF e a sua equipe executiva. No fim do dia, são essas pessoas que irão determinar como as regras serão interpretadas e, consequentemente, até que ponto o CAF conseguirá assegurar a equidade de tratamento que é a base de seus princípios.