Homenagem a Raymundo Magliano Filho: Um filósofo no mundo das ações

Quem conviveu com Raymundo Magliano Filho sabe que eram comuns as citações de seus filósofos favoritos, em especial, o italiano Norberto Bobbio, e de autores como Antonio Gramsci e Hanna Arendt. Contudo, Magliano era considerado um exímio realizador e estava longe de ser visto como um homem do “mundo das ideias”. Ele pertencia ao “mundo das ações”, aqui em duplo sentido. Foram muitas as conquistas em seus 78 anos de vida, bem vividos até o último dia 11 de janeiro, quando faleceu vítima de Covid-19. No campo dos negócios, foi presidente da Bolsa de 2001 a 2008, onde deixou um de seus principais legados: o “Movimento de Democratização da Bovespa”, cujos frutos são colhidos até hoje.

Raymundo Magliano Filho. Foto: Reprodução/Instagram

“Em conversas informais, ele falava com muito orgulho das iniciativas para popularização da Bolsa e modernização do mercado de capitais. Chegava a ser emocionante ver a energia e o entusiasmo do Seu Magliano”, diz Fábio Coelho, Presidente da Amec.

Talvez a face pública mais conhecida de Magliano Filho tenha sido a sua crença inabalável e seu pioneirismo no esforço de democratização e popularização do mercado de capitais por meio da educação financeira. O programa Bovespa Vai até Você, lançado em 2002, que chegou a mais de 300 mil pessoas atendidas, realizou mais de 3 mil eventos e fez a bolsa de valores chegar mais perto do investidor pessoa física. E não foi só isso. Durante sua gestão, o Novo Mercado, segmento de listagem com regras de governança ampliadas, decolou. Ainda durante sua gestão, a Bovespa se tornou a primeira Bolsa de Valores do mundo a aderir ao Pacto Global da ONU.

“Não há demonstração mais inequívoca do legado e do profundo reconhecimento que devemos a Magliano Filho do que o fato de a B3 ter hoje 3 milhões de investidores pessoas físicas no mercado de capitais. Ele plantou a semente da democratização e do acesso à bolsa e não há orgulho maior para nós do que ajudar a colher esses frutos”, diz o CEO da B3, Gilson Finkelsztain.

Com uma mente ativa durante toda a vida, ele continuava tendo aulas até pouco antes de sua hospitalização. Sua admiração declarada pela teoria de Norberto Bobbio formou o tripé de sua gestão à frente da Bolsa: transparência, visibilidade e acesso. “Assim, Magliano Filho liderou a Bolsa nessa jornada muito antes de temas como governança e democratização do mercado financeiro se tornarem lugar comum nas falas das lideranças empresariais do nosso país ou de o papel social das empresas ser reconhecido como um valor que agrega aos resultados”, diz comunicado da B3.

As ideias do filósofo italiano foram tão presentes em sua vida que, em outro de seus legados, Magliano Filho foi o fundador do Instituto Norberto Bobbio – Cultura, Democracia e Direitos Humanos, uma entidade sem fins lucrativos. “Detentor de um espírito democrático ímpar, associado a uma generosidade e empenho raríssimos, Magliano Filho tinha na palavra ‘legado’ uma bússola existencial”, conta Celso Azzi, amigo e Presidente do Instituto.

Ele foi autor de inúmeros artigos e livros, merecendo destaque: “A força das ideias para um capitalismo sustentável”; “Por uma bolsa democrática”; “Um caminho para o Brasil: a reciprocidade entre sociedade civil e instituições” e o recém-lançado “Capitalismo, Catolicismo e Neopentecostalismo”. Também foi colaborador de incontáveis instituições, fomentador da pesquisa e amante das discussões teóricas que poderiam iluminar o diagnóstico dos desafios nacionais e internacionais.

Família Magliano

Um terceiro legado deixado por Magliano Filho foi sua atuação na empresa de pai, Raymundo Magliano, que fundou a corretora número 1 da Bolsa e também motivou a criação de uma entidade de classe das corretoras de valores. O pai também havia sido presidente da Bolsa de São Paulo.

“Dizem que o fruto não cai longe do pé e, na família Magliano, a paixão pelo mercado de capitais chegou na terceira geração. Raymundo Magliano Neto também ouvia com atenção as histórias do avô e, antes de assumir a gestão da corretora da família, criou um projeto de educação financeira, a Expo Money, o evento itinerante que percorreu muitas capitais brasileiras”, dizem o professor Jurandir Macedo e a jornalista Cristiane Moraes, em artigo publicado na edição de fevereiro de 2021 da Revista RI.

O mesmo artigo lembra que Magliano Filho levou a Bolsa à praia e aproximou sindicatos, mulheres, estudantes e os mais diferentes públicos daquela entidade que parecia ser para poucos, mas que podia ser de muitos. De bermudão, jornal embaixo do braço e sorriso largo, Magliano tinha sempre tempo e disposição para falar sobre os conceitos de grandes pensadores e levantar bandeiras que mostram a importância da diversidade –assunto que nem estava em voga na época – e da democracia para que as ideias sejam sustentáveis para a sociedade”.

Confira a seguir alguns depoimentos sobre sua vida:

Foi um homem de estatura baixa, mas um gigante como pessoa. Educado, inteligente, sensível e intuitivo. Preocupado com as pessoas antes das coisas. Tive a sorte e a felicidade de ser seu amigo fraterno por muitos anos. Uma pessoa a frente do seu tempo. Levou humanização para o centro do capitalismo. Seu legado todos conhecem. Uma história de sucesso. Vai fazer muita falta” – Humberto Casagrande, Presidente do CIEE, amigo desde a década de 1980 e contemporâneo no Conselho da Bovespa de 2002 a 2004.

Conheci Raymundo Magliano Filho nos anos 1990, cobrindo o mercado financeiro e a bolsa de valores, nos tempos em que o mercado de ações ainda era restrito a uma elite frequentadora do Jóquei Clube. Chamava a atenção aquele senhor simpático, sempre sorridente e atencioso com todos. Nem parecia o dono de uma das mais antigas e influentes corretoras do mercado. Aproximei-me mais dele quando se tornou presidente da Bovespa, e, bem ao seu estilo, implantou uma ampla campanha de popularização do mercado, tentando levar a Bolsa para o grande público e para os pequenos investidores. Essa visão social, de tentar aproximar a elite financeira dos trabalhadores, da população em geral, de mostrar que a bolsa e o mercado de capitais têm de estar inseridos na realidade brasileira, criando riqueza para todos, é uma das principais imagens que tenho de Magliano Filho” – Angelo Pavini, jornalista de Economia e Finanças com 40 anos de experiência, trabalhou nos jornais Estadão e Valor Econômico e nas agências Reuters e Bloomberg.

Conhecido por ser o responsável pela ‘revolução democrática da Bolsa’, sua contribuição para o mercado de capitais e a sociedade civil comprovam sua fundamental importância para o desenvolvimento do Brasil. Nesse sentido, destaca-se o processo de legitimação social do mercado de capitais, projeto desenvolvido entre os anos 2001 e 2008 na então Bovespa. Transformando em ação os conceitos de ‘transparência, visibilidade e acesso’ – oriundos do pensamento político de Norberto Bobbio – a Bovespa iniciou um amplo e fecundo processo de democratização de suas estruturas institucionais, com especial destaque para a participação de mulheres e sindicalistas no Conselho de Administração da Bolsa” – Celso Azzi, Presidente do Instituto Norberto Bobbio de Cultura, Democracia e Direitos.