Lei das Estatais não é perfeita mas representou avanço importante de governança
Os debates sobre a governança das empresas estatais e sociedades de economia mista têm aquecido nas últimas semanas, em meio à privatização da Eletrobras e dos conflitos de interesse verificados na Petrobras. No entanto, para o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas, Mário Engler Pinto Filho, no atual cenário é a regulação que realmente pode reduzir as pressões por ingerências, dirimir conflitos e até preparar terreno para privatizações.
Procurador aposentado e atual Presidente do Conselho de Administração da Sabesp, Engler participou em diversos momentos da gestão de empresas públicas e elaboração de projetos de lei para o setor no estado de São Paulo. Foi dele, por exemplo, a autoria do modelo de concessão da Linha 4 do Metrô de São Paulo.
Em entrevista exclusiva ao Panorama Amec, ele avalia o cenário atual, com potenciais melhorias da Lei das Estatais, e a necessidade de ampliar a atuação das agências reguladoras em setores essenciais. Confira os principais trechos da entrevista a seguir:
Conceitualmente, quão complexa é a governança de uma estatal?
Precisamos deixar claro que uma estatal é um “bicho diferente” de uma empresa privada. O fato de ter acionistas privados ou mesmo de ser listada não suprime seu componente público. A estatal deve ter eficiência, sustentabilidade, gerar resultados financeiros. Ao mesmo tempo, deve haver algum objetivo de natureza pública ou interesse público para justificar a sua existência. Se isso não estiver presente, não tem justificativa para ser uma empresa estatal, e esse é um ponto que deve ser revisado periodicamente.
Por que a justificativa do interesse público deve ser revista periodicamente?
Quando se cria uma empresa estatal, isso ocorre em função de um objetivo que muda ao longo do tempo. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) está batendo forte nisso. Não faz sentido manter uma empresa estatal por razões ideológicas, como muitas vezes se faz. É preciso ter clareza sobre o porquê é necessário que ela continue como estatal. Ainda mais quando os instrumentos de uma regulação exógena à companhia evoluíram muito. Muitas vezes há clara indicação de que a empresa deva ser privatizada, como no caso da Eletrobras.
Como você analisa a privatização da Eletrobras? Qual o momento de deixar de ser estatal?
Isso já deveria ter acontecido há mais tempo, porque há uma regulação consolidada e um mercado competitivo no setor elétrico. A Aneel construiu uma reputação positiva. E tínhamos uma companhia que estava com dificuldade financeira de se capitalizar e era suscetível ao aparelhamento político-partidário. Então essa privatização me parece muito acertada. Já a Petrobras ainda tem algumas lições de casa a fazer para chegar no mesmo ponto, especialmente na questão da regulação.
Teria algum case de empresa estatal que tem avançado positivamente?
A Sabesp, da qual atualmente sou Presidente do Conselho de Administração. Até 2007 não era regulada. A partir daquele ano foi estabelecido um marco legal de saneamento, que agora foi reformulado, e houve importantes mudanças para a Sabesp. Você sabe que o consumidor não pode se queixar da empresa porque aquilo é fruto de uma regulação. O administrador não pode dizer ‘eu não estou reconhecendo o mandato público’ porque aquilo se transferiu para a regulação. A administração fica mais clara e mais blindada de ingerências políticas.
Como foi o processo de transição da Sabesp para uma empresa regulada?
A regulação (setorial) resolveu a influência política, porque quem passou a definir a tarifa foi o regulador, não mais o controlador ou a administração. A partir do momento que uma empresa é regulada, supondo que a regulação seja adequada, há uma revisão discricionária dos critérios a cada quatro ou cinco anos. E existem alguns mecanismos de incentivo para cobrar mais eficiência da companhia.
Quais medidas poderiam melhorar a governança da Petrobras?
Acho que a Petrobras terá que se abrir mais para a competição. Muitas das discussões sobre preço acabam sendo resolvidas por um ambiente de competição. Mas o que vemos é que a competição em refino ainda é muito limitada, apesar dos esforços da Petrobras de tentar desestatizar ativos para as refinarias. Então acho que, no final das contas, a governança está sobrecarregada. O mercado deposita muitas esperanças na governança, que ela não vai conseguir corresponder.
Qual sua avaliação sobre a Lei das Estatais?
A lei representou um avanço extraordinário. Resolveu tudo? Não, mas estamos muito melhor com a lei das estatais do que sem ela. A legislação trouxe regras bem objetivas sobre quem pode e quem não pode ser administrador, que funcionam na prática. Também trouxe outros avanços, como as regras de compliance e de gestão de riscos. A lei tentou também dar um passinho além na transparência, mas eu acho que isso não está funcionando muito bem na prática.
E tem alguma lacuna que a Lei das Estatais deveria ter solucionado e não o fez?
Ela poderia ter avançado na definição de como a administração da companhia interage com o acionista controlador. Porque aqui também se vive em um mundo de fantasia. A legislação diz que o controlador não pode se comunicar com nenhum administrador da companhia para passar as suas orientações. Mas se isso não acontece em uma empresa privada, por que que teria que acontecer em uma empresa estatal?
Querer trabalhar com um cenário que não é realista não me parece a melhor atitude. O mais adequado seria criar canais institucionais de interlocução entre a administração e o controlador, e não simplesmente negar a possibilidade de haver uma interlocução. Melhor regular, dar transparência, formalizar as interlocuções, do que deixar que elas ocorram de uma maneira opaca, informal, não institucional.
Como você avalia as discussões para alterar a Lei das Estatais que têm ocorrido no Congresso Nacional com apoio a ala política do governo? Isso pode representar algum retrocesso?
Como já disse antes, o principal avanço da legislação foram as restrições para as indicações de cargos da administração das estatais, que acabam afastando agentes políticos de altos cargos da administração federal. Isso se revelou muito positivo ao longo do tempo para blindar a estatal de um aparelhamento político-partidário. Qualquer mudança nesse ponto será um retrocesso. Mas acredito que tem uma chance menor de ser aprovada qualquer mudança substancial. E outra questão é que não resolve o problema da precificação dos combustíveis ou de outros serviços. O governo federal está em condições de eleger a maioria dos membros do Conselho de Administração, podendo exercer sua função de acionista controlador. Não é a mudança na Lei das Estatais que vai impedir a mudança na política de preços.