Mais um Passo Rumo à Democracia Corporativa

Regular não é somente expedir normas, monitorar e punir. Regular é também orientar. E talvez essa seja a forma mais eficiente de atuação de um órgão regulador. Todos já se acostumaram com as atitudes dos bancos centrais através do mundo que, através de comunicados crípticos ou entrevistas estrategicamente colocadas, conseguem de fato fazer o público entender seus objetivos e agir da maneira esperada. Muitas vezes torna-se até desnecessário o uso dos instrumentos tradicionais de regulação ou, no caso, de política monetária. As palavras fazem boa parte do trabalho.

Não deixa de ser curioso que essa prática tenha se disseminado de maneira muito mais rápida entre os reguladores bancários e monetários do que entre os do mercado de capitais. Mas, aos poucos o gap vai se fechando. Os xerifes do mercado percebem que suas palavras têm peso – e muitas vezes são a forma mais eficaz para influenciar a conduta dos agentes.

Essa verdade fica cada vez mais clara nas ações da nossa CVM. Apesar de todos os esforços para acelerar processos administrativos, selecionando os casos mais relevantes e utilizando a abordagem de supervisão por risco, dificilmente será possível chegar a um processo sancionador cuja conclusão se dê em prazo compatível com a velocidade das decisões do mercado de capitais. Muitas vezes, por mais bela que seja a decisão, ela vem tarde e aí, Inês é morta.

As orientações emanadas pelo regulador possuem, portanto, o condão de eliminar esse problema – sem falar nos custos de enforcement, permitindo à CVM utilizar seus recursos de maneira mais eficiente.

Dentre as formas de orientação da CVM, talvez a mais importante e poderosa seja o Oficio Circular. Trata-se de um documento expedido por uma ou mais superintendências da autarquia, dividindo com o mercado o entendimento do regulador acerca de determinados assuntos ou procedimentos. Alguns deles são recorrentes, e são expedidos a cada ano, com as atualizações que refletem as novidades do mercado e os focos de preocupação do regulador.

Em fevereiro, a CVM publicou a versão de 2014 do Ofício Circular SEP 01. Por sua abrangência, ele se tornou referência obrigatória para as companhias no início de cada ano. É exatamente o momento no qual as empresas elaboram suas demonstrações contábeis e preparam suas assembleias gerais ordinárias. Momentos, portanto, essenciais na vida societária das companhias abertas.

O documento tem 158 páginas – e está longe de ser uma leitura recreativa. Mas é nessas páginas que a CVM chama atenção para pontos importantes que podem não estar sendo observados pelos agentes de mercado. Sua leitura é obrigatória para qualquer um interessado nas práticas de governança das empresas – inclusive investidores.

Assim como nas atas do COPOM, a atenção das companhias (ou, mais precisamente, dos advogados) fica nas alterações entre um ano e outro. São elas que abordam as ‘novidades’ que não foram citadas em anos anteriores.

A precisão técnica da CVM na elaboração dos Ofícios Circulares tem causado impactos significativos. Os agentes aprenderam a tomar seus termos como a intepretação do regulador para pontos possivelmente obscuros da regulamentação. Adotar procedimento contrário, portanto, é pedir para levar um processo.

Muitas vezes a CVM não diz nada mais do que o óbvio nos Ofícios Circulares. Soletra normas que deveriam ser autoexplicativas, mas que acabam não sendo deliberadamente, por estratégia jurídica de entes regulados menos interessados nas boas práticas. Muitas vezes, repete julgados e precedentes já publicados, o que não deveria ser necessário. Mas, mesmo nessas situações, por mais redundante que seja a colocação, a CVM tem logrado corrigir práticas lesivas através desse instrumento.

Um exemplo importante aconteceu em 2013, quando a CVM deixou claro que entidades influenciadas direta ou indiretamente pelos acionistas controladores não podem participar de votações em separado destinadas aos acionistas minoritários. Parece óbvio e é. Mas, precisou ser dito. E bastou ser dito para vermos a correção dessas práticas lesivas.

Um dos destaques do Ofício Circular de 2014 diz respeito às práticas aplicáveis às Assembleias Gerais Ordinárias das empresas abertas.

Qualquer acionista que já se aventurou a participar de uma assembleia sabe que o processo tem problemas. Presos a uma lei de 1976, e a um Código Civil extremamente formalista e detalhista, nossas assembleias pararam no tempo. Toda a legislação é feita na hipótese da presença física do investidor e isso acontece cada vez menos, dada a crescente institucionalização da poupança. Mas o problema não é só brasileiro. Em todo o mundo os processos de exercício de voto em assembleia vêm sendo criticados por sua mecânica difícil e burocrática. Muitas vezes dá a impressão que o processo é feito para não funcionar.

No Ofício Circular deste ano, a CVM atacou esse problema de frente. E o fez sem criar qualquer norma nova, apenas esclarecendo como as regras existentes devem ser aplicadas.

A orientação do regulador elimina um dos grandes problemas de nossas assembleias: a dificuldade de divulgação de candidaturas independentes lançadas por acionistas não controladores. Como a matéria não é regulada diretamente, e como nunca foi de interesse (da maior parte) das companhias incentivar a eleição de conselheiros verdadeiramente independentes, os departamentos jurídicos rejeitavam tranquilamente os pedidos de divulgação feitos pelos acionistas minoritários. A única alternativa era o pedido público de procuração, um processo custoso e muito complexo, dependendo das características da base acionária da companhia.

Essa interpretação enviesada criava uma clara assimetria: os candidatos propostos pelo controlador eram divulgados aos quatro ventos por todos os canais de comunicação da empresa (site, edital, sistema IPE, manual de assembleia etc.). Já os independentes limitavam-se normalmente ao lançamento de seus nomes na assembleia, buscando o apoio daqueles presentes com poder discricionário de voto.

Aí que residia a importância do problema. Com a crescente institucionalização do mercado, e com a elevada presença de investidores estrangeiros no capital de nossas empresas, um número crescente de acionistas não vota no ato da assembleia. Vota à distância, utilizando mecanismos como o proxy card, produzidos por seus custodiantes e depositários. Esses agentes, com o objetivo de minimizar a subjetividade de processo (e a possibilidade de serem alvos de questionamentos), restringiam-se a incluir nessa cédula de votação as informações oficialmente disponibilizadas pela companhia. Ou seja: os candidatos colocados por minoritários NUNCA chegavam a ser incluídos nas respectivas cédulas de votação.

A CVM acabou com essa farsa de forma contundente e elegante. Mais uma vez, dizendo de maneira clara algo que já constava de sua norma. A Instrução 481/09 já dizia que a companhia deveria publicar “quaisquer outras informações e documentos relevantes para o exercício do direito de voto em assembleia”. Ora, como as empresas podiam alegar que as candidaturas independentes, a serem submetidas à votação em separado, não seriam informações relevantes? Claro que são. Mas agora isso está dito com todas as palavras. Xeque mate.

A orientação da CVM poderá, ao longo do tempo, causar transformações relevantes no processo de governança das companhias abertas. Os conselheiros independentes poderão receber apoios cada vez mais relevantes, aumentando ainda mais sua representatividade dentro dos conselhos. Mais importante, provavelmente assistiremos a um processo de despersonalização do processo de indicação já que os independentes tenderão a ser eleitos por uma coletividade de investidores, e não mais um pequeno grupo de ativistas. O exercício do poder de voto fica, portanto, cada vez mais crucial para o atendimento do dever fiduciário dos gestores.