Necessidade de modernização e de consolidação incentivou edição do novo marco regulatório de ofertas

Prestes a completar duas décadas de existência, a Instrução CVM n. 400/2003 já não mais acompanhava a dinâmica do mercado de ofertas de distribuição de valores mobiliários. Mesmo com a janela aberta pela Instrução CVM n. 476/2009, que permitiu maior agilidade aos processos de ofertas, a análise geral do mercado e da própria autarquia é que havia chegado o momento de editar um novo marco regulatório. E foi o que aconteceu em julho de 2022, com a publicação das Resoluções CVM n. 160, 161, 162 e 163. 

Flávia Mouta. Foto: Divulgação.

“O avanço em direção a uma modernização já estava no radar tanto da CVM como do mercado. As normas em vigor continuavam funcionais, mas elas já demandavam uma atualização, pois o ambiente do mercado está muito diferente do que era em 2003, ano da Instrução 400”, diz Flávia Mouta, Diretora de Emissores da B3.

A representante da B3 explica que estava cada vez mais latente a necessidade da atualização dessas normas, inclusive para consolidar as interpretações da CVM. “Havia vários normativos dispersos, então essa medida parecia importante, com um olhar de simplificação”, comenta Flávia.

Henrique Filizzola, Sócio do Stocche Forbes Advogados, partilha da mesma opinião a respeito da necessidade de modernização das regras. “A regulação atual existe desde 2003. Naquela época não havia, por exemplo, o grande desenvolvimento das mídias sociais como temos hoje. Diante de inúmeras situações novas que surgiram nos últimos anos, a CVM teve de realizar diversas interpretações”, afirma. Segundo o advogado, as interpretações precisavam passar por um processo de consolidação, que foi contemplado na elaboração do novo marco.

Flávia Mouta explica a lógica da estrutura das novas resoluções. Acredito que a CVM traz na norma algo que foi bastante discutido com o mercado, a famosa matriz de ofertas, que reconhece que para cada tipo de investidor – profissional, qualificado e público em geral (“varejo”) – é preciso ter uma espécie de tutela, tanto do órgão regulador como do mercado”. Quanto mais profissional for o investidor, menos precisa ser tutelado. Ao contrário, quanto menos qualificado, é preciso um olhar mais atento.

A especialista explica que não necessariamente é importante ter uma sobrecarga de informações, mas sim, que elas sejam claras e precisas. “A CVM traz a novidade da lâmina, que é um documento mais compacto, que se presta mais para fornecer as informações de maior relevância”, diz.

Júlia Barreto Lobo Dutra, Sócia do escritório Cescon Barrieu, conta que o novo marco regulatório de ofertas indica que os documentos sejam mais objetivos, seguindo determinados padrões. Além disse, que é preciso buscar uma dosagem adequada na prestação de informações. “No mundo digital em que vivemos, é necessário alcançar um equilíbrio entre informações que sejam suficientes, mas que não fiquem desfalcadas. Neste sentido, é preciso evitar repetições, que tornem os documentos poluídos”, aponta. Ela diz que as novas regras são baseadas no conceito de user friendly. “A lâmina agora é um documento mais objetivo que deve permitir uma análise prévia pelo investidor. Esse é um caminho importante”, defende.

Júlia Lobo, do Cescon Barrieu. Foto: Divulgação.

Um pouco antes de editar a nova norma de ofertas, a CVM também fez ajustes bastantes significativos de simplificação no formulário de referência das companhias, que é um documento que caminha junto com o prospecto na oferta. Flávia destaca essas novidades trazidas pela Resolução CVM n. 59, que entram em vigor em janeiro do próximo ano. “Está ocorrendo um movimento grande e o cuidado de simplificar o documento para o que é, de fato, relevante”, diz.

Tipos de registros

Júlia Lobo explica que o novo marco regulatório definiu que todas as ofertas devem ser registradas na CVM. Isso é uma mudança em relação à Instrução n. 476 que previa as ofertas com esforços restritos e dispensava o registro na autarquia. Em compensação, as chamadas ofertas 476 devem ser mais voltadas para um público restrito de investidores. “A partir de janeiro, não haverá mais oferta isenta de registro. Para cada tipo de valor mobiliário, de acordo com cada público, serão indicados o rito ordinário, comparável à norma 400, e o rito automático”, explica.

A advogada diferencia ainda o rito automático sem análise prévia, daquele também automático, mas com avaliação prévia realizada por entidade autorreguladora. “O registro automático sem análise prévia é similar às ofertas 476”, comenta Júlia.

Flávia Mouta explica as mudanças. “Na minha percepção, nós não estamos propriamente acabando com os conceitos da 476, que estão preservados na nova matriz de ofertas. O que existe, porém, é um novo desenho que acomoda parte do que foi enfrentado em casos concretos ao longo da existência da 476”, diz a Diretora da B3.

Autorregulação

A representante da B3 analisa que o papel do autorregulador é um ponto essencial para entender as novas regras dos registros de ofertas públicas. Ela lembra que a Anbima já possui um convênio similar com a CVM, mas que a própria B3 possui outros acordos com a autarquia. “Atualmente, temos 5 convênios com a CVM no que tange a supervisão de emissores, tanto das companhias quanto de fundos e acordos tecnológicos”, lembra Flávia.

Ela acredita que a ampliação das situações de participação da autorregulação é uma medida muito salutar para o mercado, tanto para o regulador quanto para o autorregulador. “É uma oportunidade para que o regulador e autorregulador possam dar as mãos, vislumbrando o propósito de conferir maior celeridade para o mercado atuar”, diz. A Diretora revela que a B3 já está trabalhando neste período de transição para adaptar seus sistemas às novas regras. “Eventualmente podemos montar uma parceria com a CVM para atuar como autorreguladora”, comenta Flávia.

Henrique Filizzola, do Stocche Forbes Advogados. Foto: Divulgação.

Henrique Filizzola lembra que o convênio atual da CVM com a Anbima, que prevê situações para a análise autorregulatória para determinados tipos de ofertas, não é frequentemente utilizado pelo mercado. “O convênio atual com a Anbima traz uma série de critérios complexos e isso foi decisivo para que caísse em desuso. Com o novo marco, acredito que o convênio de autorregulação voltará a ter um papel protagonista”, prevê Filizzola. Ele acredita ainda que outras entidades e organizações do mercado poderão atuar como autorreguladoras no futuro. E cita os exemplos da própria B3 e da Abrasca.

As bases para um novo convênio entre CVM e Anbima está gerando expectativa no mercado. “O novo convênio será importante para entender os prazos e como será o processo, já que se espera um rito de aprovação célere”, diz Júlia Lobo. As novas regras serão importantes para direcionar o mercado em uma possível nova janela de IPOs para o próximo ano ou mais adiante.

Além do novo convênio, outro documento importante para orientar a aplicação das novas regras é o Ofício Circular anual da Superintendência de Registros de Valores Mobiliários da CVM (SRE). Outro foco de atenção dos agentes do mercado é o processo de adaptação aos novos sistemas.

Novos coordenadores

A possibilidade de ingresso de outras organizações que não sejam instituições financeiras para atuar como coordenadores é outro ponto do novo marco que gera expectativa ao mercado. “É uma boa iniciativa ter essa possibilidade porque eventualmente, em alguns casos, pode ser que a oferta não faça sentido para essas instituições tradicionais, mas faça sentido para um outro tipo de player do mercado, que ocuparia esse espaço vago”, projeta Flávia Mouta.

Ela explica que a CVM está trazendo essa iniciativa de forma bastante cuidadosa, definindo na Resolução CVM n. 161 a necessidade de que esses novos intermediários tenham um registro no órgão regulador. Segundo a Diretora da B3, é importante ver como vai funcionar na prática, pois, muitas vezes, é difícil sair da inércia do próprio mercado.