O Imperador de Todos os Males

Cena 1: 1 Blue Horseshoe loves Blue Star Airlines.
Cena 2: Bud Fox (Charlie Sheen) algemado é levado por policiais pela sala de operações da corretora Jackson Steinem.

As cenas acima são do filme Wall Street (1987). Seu impacto emocional é inegável. O “bom bandido” sai do escritório às lágrimas, provavelmente imaginando seus sonhos e sua carreira se despedaçando como consequência de seus atos ilegais. Colegas dividem-se entre a consternação e a percepção de que, de fato, o crime não compensa.

Reportagem recente da revista The Economist cita inúmeros estudos mostrando quais os principais fatores que levam a uma redução da criminalidade: a relação entre as vantagens que o crime traz e os seus riscos (ou seja, uma análise de custo/benefício), e a probabilidade de ser pego. Estes estudos propiciam uma reflexão sobre uma das mais graves ameaças à credibilidade do mercado de capitais: a prática de insider trading.

Crime no Brasil desde 2001, o insider trading é definido como o uso de informações relevantes ainda não divulgadas ao mercado, capaz de gerar vantagem indevida mediante negociação de títulos e valores mobiliários. A pena é de 1 a 5 anos de reclusão. A percepção dos participantes do mercado sobre o insider trading é que ele se constitui num problema presente, mas que nunca foi de fato alçado ao status de prioridade. Bem ou mal, todos sabem que existemalguns players que se beneficiam de informações e acabam ganhando dinheiro com isso. Mas, talvez pelo sentimento de não haver nada que um participante isoladamente possa fazer (falso, como veremos), pela dificuldade de identificação do problema, ou até mesmo para evitar tocar num assunto espinhoso, não vemos tanta mobilização a esse respeito quanto em relação a outras mazelas do nosso mercado.

Um exemplo: você, leitor, sabia que duas pessoas já foram condenadas à prisão por insider trading no Brasil? Sim, no caso da oferta da Sadia pela Perdigão em 2006, dois executivos da Sadia foram denunciados e condenados pelo uso de informações privilegiadas. A primeira condenação aconteceu em 2011, a um ano e nove meses de prisão, além de multa. CVM e Ministério Público recorreram e, mais recentemente, as penas foram aumentadas para dois anos e seis meses. Não deixa de ser curioso que uma notícia dessa importância tenha passado despercebida por muitos agentes de mercado.

Primeiro porque a lei é relativamente nova. Até 2001, o máximo que poderia acontecer com um insider seria penas administrativas ou pecuniárias. Além disso, fruto do nosso complexo processo legislativo, nossa lei é altamente restritiva sobre quem pode de fato ser preso por insider trading. É preciso que a pessoa tenha dever de sigilo – como foi o caso dos dois administradores da Sadia. Um operador qualquer que receba a informação e negocie com os papéis pode até estar cometendo um ato imoral e ilegal, punível pela CVM. Mas não irá para a cadeia.

Além disso, o caso Sadia/Perdigão demonstrou a força de uma parceria entre a CVM e o Ministério Público que deve ser expandida. A confiança do mercado de capitais é um direito difuso, coletivo, e, portanto, deve ser tutelado pelo MP. Isso é particularmente verdadeiro no caso dos crimes de mercado de capitais (incluindo o insider trading) mas, também, em outras situações que danificam a percepção do nosso mercado. Infelizmente, ainda não existe uma cultura da importância deste bem público no Poder Judiciário. O caso em tela dá esperança de uma mudança neste aspecto, e o envolvimento do MP deve ser aplaudido e estimulado. Outro precedente importante foi no caso da venda do controle do Grupo Ipiranga. A CVM detectou as negociações fora de padrão, e conseguiu congelar os recursos auferidos com as operações desses papéis antes da sua liquidação financeira. Alguns acusados receberam multas. Outros escaparam com ‘termos de compromisso’.

Aqui cabe uma observação importante: a necessidade de punição deve ser obviamente inserida dentro do estado de direito. E provar o crime de insider trading não é fácil. As absolvições acabam acontecendo por “falta de provas”. Além disso, muitas vezes uma negociação de “sorte” pode ser confundida com o uso de informações privilegiadas. É importante que o regulador e o judiciário tenham capacidade de discernir entre eles.

Mas, ainda assim persiste a impressão de que é fácil ‘escapar’ da punição. Talvez, devido a certo formalismo exagerado em nossa tradição jurídica, pode parecer que a punição só ocorrerá se e quando for encontrada a proverbial marca de batom no colarinho. E essa raramente aparecerá. Por definição, o insider trading é fruto de informação. E esta muitas vezes é fluida, e não deixa rastros físicos. Ninguém vai assinar um papel dizendo ‘compre a ação tal porque a empresa vai ser vendida semana que vem’. Aqui estamos falando na admissão dos indícios como elementos definidores do crime. Em artigo seminal de 1978, disponível do site da CVM, a então advogada da autarquia, Norma Parente, argumenta que o indício pode e deve ser utilizado pelo juiz para a constatação do insider trading. Requerer provas físicas e concretas da conexão entre a informação e o ganho ilegal seria o mesmo que tornar quase impossível a determinação do crime. Infelizmente, algumas decisões parecem fugir dessa realidade, abrigando-se sob o guarda-chuva do formalismo (ou, como está na moda, do “garantismo”). A CVM tem precedentes do uso do indício em seus julgamentos, mas em muitos casos eles têmm se revelado insuficientes para garantir uma condenação.

Mas, a maior evidência da dimensão do problema ocorreu durante o roadshow promovido pela Amec em abril deste ano. Ao perguntar a investidores estrangeiros qual o maior problema de governança enfrentado pelo mercado brasileiro, cerca de 25% dos respondentes foram taxativos: o insider trading. Alguns desses investidores foram mais além, dizendo que o Brasil estava ameaçado de passar por uma russificação, ou seja, transformar-se num mercado no qual a percepção externa – correta ou incorreta – é de pouco apreço pelas regras de mercado e fair play.

Isso sem dúvida acende uma luz amarela – senão vermelha – em nosso mercado. Será que o problema de fato é maior do que pensávamos? Será que ele está piorando? Opiniões como essa sugerem que de fato o insider trading pode ser comparado a um tumor que crescia lentamente entre nós – e que pode estar passando por uma metástase.

É hora de parar para pensar. O insider trading nada mais é do que roubo – dinheiro sendo confiscado dos investidores minoritários. Nas palavras da Subprocuradora-Chefe da CVM, Julya Wellisch, “o comportamento traiçoeiro dos insiders não ofende apenas os direitos dos demais investidores, mas também prejudica o próprio mercado, abatendo a confiança e a lisura das suas relações, aspectos que fundamentam a sua existência e constituem a base para o seu desenvolvimento”.

A CVM tem tentado avançar, mas para isso enfrenta todo tipo de obstáculo. A implementação do sistema SIA-Eagle, que monitora transações anormais no mercado, foi atrasado em vários meses por conta de contingenciamento de verbas – em clara afronta à autonomia financeira e orçamentária da CVM (Lei 6.385/76, Artigo 5º). O atraso se faz sentir até hoje, e dificulta o trabalho de monitoramento do regulador. É fundamental que os participantes de mercado insurjam-se contra situações desse tipo.

Chama a atenção, ainda, a tentativa de suavização da tipificação e redução de punições dos crimes financeiros, presentes no projeto de reforma do Código Penal.Em face a tudo isso, os investidores devem estar atentos e conscientes da gravidade do problema. A parceria entre CVM e MP deve ser estimulada. É fundamental, também, a criação de estruturas de ressarcimento de prejuízos decorrentes do uso de informações privilegiadas – hoje inexistentes.

Talvez a CVM deva instituir um “Disque Denúncia” para participantes do mercado que tenham conhecimento de operações motivadas por informações privilegiadas. Isso até é possível hoje, mas poucos conhecem o caminho. Se o processo for consolidado, garantindo o anonimato aos denunciantes, sem dúvida teremos instrumentos para facilitar o trabalho dos reguladores em punir esse crime.

De toda maneira, é chegada a hora de reconhecermos que o insider trading é um câncer em nosso mercado de capitais – daí o título deste artigo – e que sua expansão pode matar todos os avanços que fizemos nos últimos anos.