O Melhor Desinfetante
A BM&F Bovespa acaba de propor, no âmbito da reforma do Novo Mercado, a obrigatoriedade para que as empresas dos segmentos especiais publiquem a remuneração da administração na forma determinada pela CVM.
Soa estranho a mera inclusão de uma norma dizendo que as empresas “premium” de governança precisam cumprir a lei. Mas, aqueles que acompanham o debate sabem que a proposta faz sentido, uma vez que 33 empresas de capital aberto – sendo 27 listadas no Nível 2 ou no Novo Mercado – se utilizam de uma medida liminar obtida pelo IBEF-RJ que as isenta da obrigação, sob argumentos como “privacidade” e “segurança”. A proposta da BM&F Bovespa traz de volta, portanto, uma discussão que se iniciou há quase 10 anos, sob a liderança da então presidente da CVM, Maria Helena Santana. Desde então, as empresas abertas brasileiras deve(ria)m publicar a remuneração mínima, média e máxima de cada um dos seus órgãos de administração – conselho e diretoria. A norma, portanto, permite às partes interessadas entender realmente a concentração da remuneração, e os incentivos que ela representa para os administradores. Ao mesmo tempo, é ponderada o suficiente para não demandar a publicação individual das remunerações – prática normal no exterior, mas que ainda fere alguns brios por aqui.
Causa espanto aos observadores estrangeiros – notadamente os investidores – o estágio embrionário das discussões sobre remuneração de executivos no Brasil. No mundo, trata-se de um tema dentre os mais importantes, não apenas na agenda dos chamados investidores ativistas, mas também dos reguladores. O debate possui três grandes frentes: transparência, estrutura e escrutínio.
A batalha da transparência já foi ganha há muito tempo. Empresas abertas nos Estados Unidos e na Europa divulgam regularmente informações detalhadas sobre a remuneração INDIVIDUAL de seus administradores. Os próprios CEOs concordam com esta realidade, como ficou claro no documento Commonsense Principles of Corporate Governance, assinado por 13 CEOs, dentre eles, Jamie Dimon (JP Morgan), Warren Buffett (Berkshire Hathaway), Jeff Immelt (GE) e Mary Barra (GMC). Eles dizem que:
Companies should clearly articulate their compensation plans to shareholders. While companies should not, in the design of their compensation plans, feel constrained by the preferences of their competitors or the models of proxy advisors, they should be prepared to articulate how their approach links compensation to performance and aligns the interests of management and shareholders over the long term. If a company has well designed compensation plans and clearly explains its rationale for those plans, shareholders should consider giving the company latitude in connection with individual annual compensation decisions.[1] [nosso grifo]
Os debates se acirram quando se discute a estrutura dos planos de remuneração. Como vimos na crise financeira de 2008, muitos executivos eram pagos segundo fórmulas que tinham pouca relação com a performance de fato das suas empresas. Afinal, bancos quebraram e tiveram que pagar bônus de dezenas de milhões para vários executivos. Além da falta de ligação entre remuneração e resultado para os acionistas, vimos que esses planos tinham pouca sensibilidade aos riscos assumidos, levando muitas vezes o executivo a apostar tudo, pois se dá certo ele fica rico e se dá errado seu prejuízo é limitado (quando existe). São as estruturas assimétricas que não apenas enriqueceram executivos de maneira torpe, mas levaram a danos na economia real, tendo em vista as más decisões tomadas.
Um grande guia para implementação de boas práticas é o ICGN Guidance on Executive Remuneration[2], lançado originalmente em 2012, atualizado em 2015 e homologado pela assembleia da organização em 2016. O trecho abaixo mostra os princípios básicos do documento:
An effective remuneration structure is only part, albeit an important part, of the employment relationship that will be entered into with an executive. That relationship should encourage the right behavior, while also helping to recruit and retain successful employees and to provide the right level of reward for good performance. It will also ensure that only the necessary level of remuneration is paid and that poor performance is not rewarded.
O documento do ICGN é um excelente ponto de partida para entender as preocupações atuais na criação e administração de planos de remuneração dos administradores, levando em conta incentivos, retenção, riscos e alinhamento. É interessante como o debate tem evoluído no sentido de cláusulas de claw back, isto é, na devolução de valores pagos em excesso, sob a luz de informações posteriores sobre o impacto de longo prazo de algumas decisões de gestão. A crítica aos pacotes de pagamentos garantidos, na entrada ou na saída dos executivos (Golden parachutes, Golden handshakes, etc.) também cresce a cada dia, e é reconhecida pelo ICGN.
Claro que só é possível discutir a estrutura de pagamento – e a estrutura de incentivos que incide sobre os executivos – se houver transparência de fato nas metodologias de remuneração. Voltaremos a este ponto mais adiante.
A terceira frente é o escrutínio por parte dos investidores. Em muitos países não é necessária a aprovação dos acionistas para a remuneração dos administradores. Esse tem sido talvez o ponto mais polêmico do debate, com muitas empresas sendo levadas a introduzir normas estatutárias que prevejam a submissão das propostas de remuneração ao voto vinculante dos acionistas. É a campanha do say on pay, que cresce a cada ano. Em 2011 a Lei Dodd Frank, nos Estados Unidos, determinou a submissão de planos de remuneração aos acionistas, ainda que de maneira consultiva. O número de empresas que teve os pacotes rejeitados é pequeno, mas quando isso acontece as consequências são grandes, podendo levar à troca da administração ou pelo menos do conselho.
Enquanto isso, no Brasil…
As discussões sobre remuneração seguem como um ponto secundário no debate sobre o mercado de capitais. É curioso que isso aconteça, uma vez que os acionistas brasileiros têm muito mais poder para se manifestar nesta questão do que no caso dos Estados Unidos, por exemplo. Nossa legislação de 1976 já determina o voto anual dos acionistas para o teto de remuneração dos administradores.
Ocorre que, num típico “acochambramento” brasileiro que mata a essência em favor da forma, as aprovações durante muitos anos se davam exclusivamente sobre o “valor global” autorizativo de gastos, sem qualquer abertura de detalhes. Mais recentemente, notadamente a partir da Instrução CVM 481, de 2009, detalhes dos planos de remuneração passaram a ser divulgados na proposta da administração. Trata-se, portanto, de um item novo na mesa tanto para investidores como para empresas.
Como não poderia deixar de ser, a Amec tem observado um interesse crescente dos investidores em discutir os aspectos de remuneração de executivos. Em 2015, recebemos representante da Calpers no nosso Fórum Amec de Investidores[3], e sua apresentação foi seguida por debates com investidores brasileiros sobre o tema. Mais recentemente, no Workshop[4] sobre a Temporada de Assembleias 2016, o interesse foi reiterado, a ponto de nos levar a planos para organizar um evento específico sobre esse tema nos próximos meses.
A sensação dos investidores é que o debate é impedido por duas razões fundamentais: a estrutura de controle das nossas empresas – que permite aos controladores aprovar os pacotes propostos – e o disclosure deficiente para que se possam tomar conclusões relevantes sobre os programas de remuneração.
A onipotência dos controladores para determinação da remuneração dos administradores tem sido minada por decisões recentes – e corajosas – da Comissão de Valores Mobiliários. Em julgamento recente[5], a CVM concluiu que salários exorbitantes pagos a conselheira da família controladora sem qualquer experiência de negócios foram irregulares. Claro que se trata de uma situação limite, mas é um indicador que não se pode fazer qualquer coisa com uma empresa de capital aberto, na qual os administradores têm deveres fiduciários para com a totalidade dos acionistas.
Já o disclosure esbarra em inexperiência e preconceitos por parte de algumas empresas. Vejamos alguns exemplos:
- Empresa A – listada em um dos segmentos especiais da BM&F Bovespa. Seu Formulário de Referência faz considerações sobre os princípios por trás da remuneração do “Pessoal-Chave” da Administração. Contudo, a tabela que fala da remuneração da diretoria toca apenas em 4 diretores estatutários. Sabe-se somente que esses diretores recebem um salário ANUAL inferior a R$ 50 mil no total (isto é, na média talvez algo como R$ 1.000 por mês por diretor). No ano anterior, a remuneração individual máxima foi de cerca de R$ 75.000, e a mínima de aproximadamente R$ 40.000. Registra-se que, além desses valores os diretores recebem remuneração de subsidiárias. Trata-se dos diretores da empresa holding, que é a aberta. Mas, o pessoal-chave da administração é composto por um grupo de aproximadamente 35 executivos, como aprendemos em “outras informações relevantes”. Esses 35 diretores receberam, no consolidado, quase R$ 100 milhões. Não há informação sobre valores médios, mínimos e máximos. Será que cada um recebeu em média R$ 3 milhões? Ou será que um ou dois receberam 80%, e o resto foi dividido entre os demais. Será que essa empresa quer realmente que o mercado entenda como remunera seu “Pessoal-Chave”? Não parece uma “pegadinha”, divulgar a remuneração máxima de R$ 75.000 por ano, quando a efetiva pode até ser mil vezes maior?
- Empresa B – empresa não listada no Novo Mercado ou no Nivel 2. Não abre a remuneração mínima, média ou máxima. Remuneração da Diretoria Executiva na casa das centenas de milhões de reais. São quase 100 diretores estatutários. O que é possível inferir da remuneração dessa empresa? Qual o grau de risco dos principais tomadores de decisão? Qual o grau de alinhamento entre remuneração e performance? Qual a capacidade de retenção de talentos no topo?
- Empresa C – empresa não listada no Novo Mercado ou no Nivel 2. Faturamento anual de quase R$ 50 bilhões (com “b”). Possui 6 Diretores estatutários. Remuneração total de R$ 1.7 milhões, que dá uma média de R$ 300 mil para cada. Curiosamente, a remuneração total do conselho de administração é maior do que dos executivos – R$ 3 milhões. Não surpreende que boa parte dos conselheiros sejam membros da família controladora. Não fornece informações sobre valores máximos, mínimos e médios. Em “outros itens” aprendemos que os membros da diretoria recebem mais R$ 2 milhões por ano dos controladores, e R$ 45 milhões das controladas. Mas o nível de transparência desses números é muito inferior àqueles pagos diretamente pela empresa aberta.
Ao propor a inclusão de regra sobre o disclosure da remuneração na forma determinada pela CVM, a BM&F Bovespa por um lado faz o óbvio (empresas premium precisam pelo menos seguir as regras!), mas por outro toca num tema sensível que causa reações muitas vezes irracionais.
Os argumentos utilizados incluem a segurança dos administradores, o direito à privacidade e a “inutilidade” da informação.
O argumento da segurança carece de qualquer fundamentação baseada na realidade. Não se tem notícia de qualquer administrador de empresa aberta no Brasil que tenha sido vítima de violência por conta de dados disponibilizados ao mercado. Tampouco que sequestradores sejam leitores dos formulários de referência da CVM. Ainda que fossem, é pouco provável que a abertura das remunerações trouxesse qualquer informação adicional que motivasse uma ação contra quem quer que seja. Também não há registro de taxas de violência maiores contra executivos das empresas que cumprem a norma do que aqueles que sonegam a informação.
O direito à privacidade é um pleito muito legítimo. Mas não para empresas que acessam o capital do público. Uma vez que o fazem, precisam informar como os tomadores de decisão estão sendo incentivados. Isso é fundamental para se entender o perfil de risco da empresa, a capacidade de retenção de talentos e até mesmo o padrão ético da empresa. Portanto, executivos que não desejam a publicação dos seus ganhos estão exercendo um direito seu – mas devem consequentemente trabalhar em empresas de capital fechado. Da mesma maneira, empresas que respeitam seus acionistas devem se abster de contratar executivos caso tal sigilo – através do uso da liminar do IBEF – seja um condicionante.
A “inutilidade” da informação é talvez o argumento mais equivocado. Dizer que entender a dispersão das remunerações dos administradores atende somente a uma “curiosidade” de alguns investidores é menosprezar a inteligência daqueles que fornecem capital para as empresas abertas. É ignorar a realidade de todo o mercado internacional de investidores institucionais. É partir do princípio que as empresas podem fazer o que bem entenderem com o capital dos acionistas, sem prestar contas das suas estruturas de incentivo.
Já ouvimos também que “o acionista pode optar por não comprar ações da empresa que não divulga os dados de remuneração”. O argumento, levado ao seu limite, deveria permitir até mesmo empresas abertas que não publicassem seus balanços. Afinal, os investidores poderiam optar por não comprar suas ações. Mas, é duvidoso que tal prática colabore na construção de um mercado de capitais saudável. É particularmente difícil aplicar o argumento, diga-se de passagem, às empresas dos segmentos premium, que se comprometem, pelo menos em tese, a adotar as melhores práticas alinhadas inclusive com a realidade internacional.
Há ainda o argumento “cultural”. Esse nos parece ainda mais preocupante. Dizer que o Brasil é diferente porque nossa “cultura” preza a privacidade em detrimento da transparência é a senha para nos condenar ao subdesenvolvimento. É algo parecido com aceitar a realidade descrita por Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, pela qual o brasileiro teria uma característica “cordial” que o diferenciaria de outras culturas. Na mesma toada, poderiam se justificar o patrimonialismo, o capitalismo de laços, o nepotismo, o machismo… até mesmo a escravidão e as capitanias hereditárias.
Como dito acima, a CVM foi muito ponderada ao redigir sua norma. Ela se absteve de determinar a publicação individual das remunerações dos administradores, limitando-se à informação mínima que os investidores necessitam.
As empresas que utilizam a liminar do IBEF e que se opõem à proposta da BM&F Bovespa estão dizendo aos acionistas que não estão preocupadas com eles. Pior do que isso, maculam a imagem dos segmentos diferenciados de governança corporativa, ignorando um tema extremamente importante para a comunidade mundial de investidores.
Elas não devem prosperar. Como disse o juiz Louis Brandeis, da Suprema Corte americana, a luz do sol é o melhor desinfetante. É hora de usá-lo nas práticas de remuneração das empresas brasileiras.
[1] http://www.governanceprinciples.org/wp-content/uploads/2016/07/GovernancePrinciples_Principles.pdf
[2] https://www.icgn.org/sites/default/files/ICGN_Executive-Remuneration_2015.pdf
[3] https://youtu.be/7OO-Q-IEf1M?list=PL_hym_FCqXW2gNYjxqYqkQNvc375O1WhJ
[4] http://amecbrasil.org.br/?p=4393
[5] PAS RJ-2011-5211