Padronização para Poison Pills deveria vir da autorregulação dos níveis diferenciados da Bolsa

Com a experiência de ter lidado com o tema das Poison Pills em pelo menos duas ocasiões específicas, quando foi Diretor da CVM entre 2009 e 2013, e quando atuou como Presidente do Comitê de Aquisições e Fusões (CAF) entre 2015 e 2021, Otávio Yazbek analisa a evolução, as distorções e potencialidades de utilização desse tipo de cláusula estatutária no mercado brasileiro. Advogado e Sócio do escritório Yazbek, o especialista lembra de sua atuação ao lado do também ex-Diretor da autarquia Marcos Pinto, na elaboração e aprovação do Parecer de Orientação CVM n. 36, que trouxe importante posicionamento quanto ao equívoco de tratar as Poison Pills como cláusulas pétreas.

Com necessidade de avançar ainda mais na definição de regras e orientações mínimas para o uso do mecanismo pelas companhias, Yazbek defende que a saída para aperfeiçoar a utilização dessas cláusulas passa pela autorregulação do Novo Mercado da B3. “A autorregulação eventualmente poderia regulamentar a Poison Pill.”, diz o advogado em trecho da entrevista exclusiva concedida ao Panorama Amec. Confira a seguir na íntegra:

Otávio Yazbek, Advogado e Sócio do escritório Yazbek. Foto: Divulgação.

Como tem sido utilizada a cláusula de Poison Pill no Brasil? Como você avalia sua utilização?

De modo geral, as cláusulas de Poison Pill começaram a se tornar moda no mercado brasileiro a partir da onda de abertura de capital iniciada entre 2004 e 2005. No Brasil, temos um modelo de controle tipicamente concentrado e, ao mesmo tempo, as regras do Novo Mercado exigem um float mais relevante. As cláusulas surgiram, muitas vezes, como uma forma de proteger o acionista controlador. Passaram a funcionar como uma garantia para o controlador, de modo a reforçar sua posição de poder. Em certa medida, isso é uma distorção. As cláusulas começaram a ser adotadas, e junto delas, foram criadas cláusulas pétreas. Elas fecharam o conjunto de uma maneira tal, que o sujeito que adquirisse posições relevantes não tinha como o controle. Em alguns casos, a situação se tornaria muito complicada.

Então, isso representou uma distorção do conceito original?

Sem dúvida, foi uma distorção, porque no conceito original, você tem a Poison Pill em situações de companhia de capital disperso, como uma forma de proteger o quadro de acionistas de uma aquisição repentina de controle. Então, criava-se a Poison Pill como uma forma de reduzir a possibilidade de uma tomada hostil, sobretudo, em ambiente de capital disperso. Aqui, ela foi utilizada no ambiente de controle, muitas vezes para proteger o controlador.

Quais as consequências dessa forma de utilização das Poison Pills no mercado brasileiro?

Por conta desse instrumento, algumas operações legítimas de reorganização societária, foram impedidas. Porque quando você insere a cláusula e vai a mercado, você não está pensando no que o futuro te espera. No futuro você pode passar por momentos de crises ou necessidade de reorganização. E você começa a bater em cláusulas de Poison Pill cada vez mais detalhadas. Alguém vinha com uma ideia cada vez mais “inteligente” e amarrava uma outra cordinha. No final, se chegou em uma situação em que as cláusulas eram verdadeiros impedimentos para reestruturações legítimas. Naquela época, a CVM decidiu fazer uma manifestação pública, pelo Parecer de Orientação 36, para enfrentar o problema, em julho de 2009.

Poderia comentar como surgiu essa iniciativa e como ela se desenvolveu?

Ela nasceu de uma iniciativa do Marcos Pinto, que na época era diretor. Depois que assumi também como diretor da CVM, eu e o Marcos, trabalhamos em conjunto nisso. A gente preparou um memorando explorando as fragilidades do modelo de cláusula pétrea e, com base nele, a CVM definiu que não faria enforcement se tivesse descumprimento de cláusula pétrea. Ou seja, se uma determinada companhia decidisse fazer uma assembleia para retirar a Poison Pill – e existem disposições que travam essa retirada, pois impedem o acionista de votar a favor, porque acabam jogando para ele o ônus de fazer uma oferta – a CVM não faria enforcement. Isso foi uma sinalização importante para o mercado.

Então era para “desarmar” as amarrações das cláusulas pétreas?

Justamente, para ajudar a desarmar. Porque pelo menos nós avisamos acionistas e administradores que se tivesse descumprimento, a gente não iria fazer o enforcement. Isso é importante porque, em princípio, as regras de Poison Pill no Brasil são completamente privadas, elas são criadas entre as partes no estatuto. A CVM não deve fazer enforcement; não faz cobrança relacionada à Poison Pill em si. No entanto, deve atuar em relação ao descumprimento de uma regra estatutária que pode ser abuso de poder de controle, abuso de direito de voto ou descumprimento dos deveres dos administradores. Mas, nesse caso específico, a CVM falou que “se vocês descumprirem estas regras, nós não iremos cobrar”. Isso acabou facilitando alguns processos de negociação de operações de reorganização societária ou de aquisição de controle.

Você acha que precisamos de uma regulação mais específica ou de uma autorregulação?

Se pensarmos em termos de regulação estatal, acho que não tem necessidade. Porque seria o típico caso da CVM entrando numa matéria estatutária, que é uma matéria contratual entre as partes. Então a CVM estaria intervindo na livre disposição das partes, inclusive sem base. A lei autoriza a CVM a regulamentar muitas coisas, até mais coisas do que é comum entre os reguladores de mercado de capitais em outros países. No entanto, embora ela tenha amplitude maior no Brasil, ela não autoriza que se estabeleça obrigações relacionadas aos dispositivos estatutários, que se limite a possibilidade de as partes contratarem aquilo que está dentro da lei.

Mas existe um limite que pode ser discutido em relação às matérias contratuais e dos estatutos?

Sim, na prática, essas fronteiras são desafiadas. Mas o fato é que essa regulamentação, a meu ver, seria desproporcional e excessiva. A autorregulação eventualmente poderia regulamentar a Poison Pill, por exemplo, a B3 quando tenta fazer esse tipo de regulamentação nos níveis diferenciados de governança corporativa. Neste caso, faria sentido ter uma regulamentação mínima sobre Poison Pill, porque eventualmente pode se prestar a finalidades inadequadas, pode gerar as distorções a que me referi. Então pode fazer sentido você ter esta previsão.

E qual a dificuldade de se avançar com a autorregulação em relação às cláusulas de Poison Pills, por exemplo, no Novo Mercado?

A dificuldade que existe nesses níveis é que eles funcionam por adesão e a regra estabelece necessidade de aprovação por todo mundo. Então você tem naturalmente o mercado que se rebela contra o que muitas vezes é visto como uma excessiva intervenção da Bolsa. Existe uma resistência, porque as empresas preferem ter maior flexibilidade na hora de definir suas cláusulas.

Pensando na autorregulação, um órgão como o CAF (Comitê de Aquisições e Fusões), que foi extinto, mas enquanto existiu, chegou a tratar de conflitos envolvendo Poison Pills?

As Poison Pills não necessariamente incidiam no campo do CAF. Dependendo das consequências delas, elas podem culminar em uma aquisição originária de controle. Elas podem ter como gatilho a aquisição em mercado de ações de um volume muito grande. Então nesses casos nós não estaríamos dentro da competência do CAF. No entanto, o código do CAF tinha uma série de princípios que deveriam ser observados nas operações de reorganização societária, que eventualmente poderiam conflitar com o desenho de Poison Pills concretas. Então, em determinados casos, a incidência de uma Poison Pill poderia gerar distorções. E se o CAF tivesse continuado com uma atuação mais efetiva, certamente o tema Poison Pill acabaria vindo para a mesa, porque é o tipo de assunto que aparece em operações de reorganizações dos mais diversos tipos.

E como induzir a utilização dessas cláusulas para o desenvolvimento do mercado?

Quando estamos falando do papel da Poison Pill para desenvolvimento do mercado, é separar o joio do trigo. Se ela é usada em companhias com um controle muito consolidado, talvez não tenha a ver com proteção do mercado. Neste caso, tem mais a ver com a proteção do acionista controlador. Isso tem que ser interpretado de forma correta. Eu não posso dizer que isso é proteção do mercado como um todo. Mas se elas forem usadas em companhias com capital disperso, elas passam a fazer sentido. Mas mesmo nessas companhias, as Poison Pills podem ser utilizadas de maneira inadequada, para proteger a administração. Neste contexto, nós precisamos pensar em uma coisa que talvez a autorregulação possa dar, que é a padronização.

Como a padronização das Poison Pills pode ser um avanço?

A maior dificuldade em matéria de Poison Pill é a variedade de desenhos que são possíveis de fazer. Por um lado, isso é bom; por outro, essa grande variedade traz risco jurídico. Cada um vai interpretar para um lado em um determinado caso. A padronização traz benefícios, porque ela reduz o campo de incerteza que decorre do que se pode chamar de “vagueza semântica”, de que eu descrevo como coisas que podem ser interpretadas de formas diferentes. Então, contar com uma padronização pode ser útil para reduzir a incerteza. E a principal maneira de se definir uma padronização, talvez seja a autorregulação.  Pode inclusive ser uma autorregulação completamente voluntária.

De onde pode vir esse tipo de autorregulação voluntária?

Pode vir de um órgão de mercado que não tem a capacidade que a Bolsa tem de impor alguns comportamentos. Esse órgão pode falar “vamos fazer um manual de Poison Pill com cláusulas padrão”. Se todo mundo aderir, essa é uma forma de padronização. Para mim, uma das coisas importantes é reduzir esse campo de complexidade.