Para ex-diretora da CVM, TPRs se tornaram mais transparentes, mas regulação ficou estagnada

Nos últimos anos, a autorregulação ajudou a tornar as Transações com Partes Relacionadas (TPRs) mais transparentes no Brasil, mas a regulação de condutas envolvendo tais operações ainda é insuficiente. É o que comenta a ex-diretora da Comissão de Valores Mobiliários, Luciana Pires Dias, em entrevista exclusiva ao Panorama Amec.

Com a experiência de cinco anos no colegiado da Autarquia responsável pelo mercado de capitais, a especialista, que atualmente é professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e sócia do L|Dias Advogados, analisou as dificuldades de se lidar com operações societárias com partes relacionadas em que há prejuízos a acionistas.

Ela também relembrou casos emblemáticos como Oi e Eletrobras, cujas TPRs marcaram seu mandato na CVM entre 2010 e 2015. A advogada analisa ainda a tentativa frustrada da Lei 14.195/2021 de trazer novas regras para as TPRs e para a forma como a CVM poderia aplicar regras sobre o tema. Confira a entrevista completa a seguir:

Luciana Pires Dias, ex-diretora da CVM. Foto: Divulgação.

Em sua experiência como diretora da CVM, você teve que lidar com alguns casos emblemáticos envolvendo TPRs, como Oi e Eletrobras. Poderia relembrar as decisões desses episódios?

É interessante analisar ambos. No caso da Oi, a CVM permitiu que o acionista controlador votasse, mesmo tendo uma vantagem diferente dos demais acionistas. No caso da Eletrobras (controlada pela União), a CVM o impediu de votar. Foram duas TPRs, uma envolvendo operação societária e a outra envolvendo um contrato com acionista controlador. E a CVM deu uma solução diferente para cada um, o que gerou bastante insegurança no mercado. Nesse sentido, acho que as condições sobre quando o acionista pode votar ou não mereceriam regras mais claras.

Considera que impedir a União de votar, no caso da Eletrobras, foi uma decisão mais correta e mais importante para o mercado?

Sim. Fui a relatora desse caso, então eu concordei com a decisão. E não fui vencida como no caso da Oi, em que também fui relatora. Então, avalio que a decisão do caso Eletrobras foi melhor que do caso Oi.

Você enxerga alguma evolução na forma como o mercado lida com TPRs nos últimos anos?

Acredito que em um certo sentido a autorregulação evoluiu. Hoje temos mais transparência a respeito dessas transações. Isso não significa que nós tenhamos maior ou menor incidência de problemas, apenas que conseguimos identificar com mais facilidade esse tipo de transações.

A regulação acompanhou essa evolução?

Não. Ainda hoje, as TPRs não são objeto de nenhum tipo de regulação, do ponto de vista de conduta. Não existe nenhuma norma que fale o que você pode ou não fazer. Nem mesmo existe uma regulação que limite ou estabeleça instâncias específicas de aprovação para essas transações. Há um debate a respeito da competência da CVM para fazer isso. Aparentemente, acho que não tem competência para regulá-las para além de regras de transparência.

Quer dizer que ainda não há mecanismos legais que possam impedir a realização de TPRs que sejam prejudiciais, por exemplo, aos minoritários?

Exato, nada impede que essas transações sejam realizadas. Raramente alguma coisa impede uma transação, que pode não ser tão vantajosa para minoritários, ou para a própria companhia.

Mas então como o mercado está lidando melhor com as TPRs?

A evolução não veio da regulação, mas sim, de outros aspectos. A própria CVM vem evoluindo, desde 2011, exigindo mais transparência a respeito dessas transações nas normas contábeis. E também a última atualização do Novo Mercado, que entrou em vigor em 2021, passou a exigir uma política de TPRs das companhias listadas. Embora o Brasil não tenha caminhado para regular condutas, coisa que muitos países que têm economias parecidas ou de tamanhos parecidos fizeram, evoluímos em transparência.

E, além da exigência de uma política específica, o que o Novo Mercado recomenda como boa governança para TPRs?

Depende muito de qual é a característica das transações que essa empresa costuma realizar. Mas, em geral, as políticas devem estabelecer os mecanismos de identificação dessas transações. Infelizmente, é bem mais difícil encontrar uma política que consiga abranger as operações societárias. E é justamente nesse tipo de operação que vemos maior incidência de casos de expropriação de minoritários.

Não seria o caso de exigir a existência de um comitê, com membros independentes, para analisar esse tipo de operação?

Tem companhias que não entram nesse tipo de operação porque elas têm o controle tão disperso que não têm partes relacionadas. Ou porque a natureza da operação delas não enseja esse tipo de operação. Então, exigir o comitê de toda e qualquer companhia parece um ônus com o qual nem todas precisam arcar.

A Lei n° 14.195/2021 exige que a alienação de 50% dos ativos envolvendo TPR deve ser debatida em assembleia. Como você avalia essa mudança?

Essa nova regra é letra meio morta. Nunca vi uma operação com esse volume no mercado brasileiro, uma venda de mais de 50% dos ativos. A redação inicial do artigo na medida provisória indicava que a CVM poderia regular o que teria que ir para a assembleia ou não. Entre a discussão da MP e a transformação em lei, ficou essa regra limitada apenas às transações com valor de 50% ou mais dos ativos. E, sinceramente, isso nunca vai acontecer, porque é uma transação muito grande. É uma redação que praticamente não serve para nada.

A redação inicial da Medida Provisória era mais adequada?

A redação da medida provisória era mais adequada. Não resolvia 100% do problema porque dependia de uma regulamentação da CVM, mas ajudava a dar um passo para a frente. Mas ela não passou, então nós continuamos mais ou menos onde estávamos antes disso. É um caminho de evolução lento, bem melhor em relação à transparência, e muito pouco efetivo em relação à conduta.