Por um mercado mais seguro

Os investidores que acreditam no mercado de capitais brasileiro como uma ferramenta para o desenvolvimento econômico tomaram vários sustos na segunda metade de 2018. Uma “safra” de operações societárias gerou sérias dúvidas sobre a higidez do nosso mercado, sobre a certeza de que investidores sejam tratados de forma justa e sobre a responsabilidade dos administradores de algumas companhias. Muitos dos casos, inclusive, envolvem empresas do Novo Mercado – o que gera ainda mais dúvidas sobre a capacidade do segmento premium do nosso mercado para oferecer efetiva proteção aos direitos dos investidores.

Essa preocupante onda de operações societárias, que têm em comum beneficiar poucos em detrimento de muitos, exige uma rediscussão de temas importantes para o mercado de capitais brasileiro e provoca uma cobrança da ação de reguladores seja pela análise dos casos específicos, seja pela rediscussão da legislação vigente, seja pela revisão das decisões pretéritas.

O caso Qualicorp é um desses exemplos. Em apertada síntese, o Conselho de Administração decidiu fazer uma TED de R$ 150 milhões para o controlador de fato e presidente executivo da Companhia. O fato relevante que divulgou sobre a decisão daquele colegiado ocorreu uma semana depois da decisão, impedindo até mesmo a hipótese de uma medida liminar dos reguladores no sentido de obstar o pagamento. Os administradores justificaram o pagamento como uma forma de “alinhar os interesses” do executivo – aparentemente olvidando-se que por lei todos os administradores já têm a obrigação de agir com lealdade à empresa.

Como forma de justificar o pagamento, os administradores da companhia classificaram o pagamento de um contrato de não competição. Essa justificativa sutilmente retiraria da matéria a obrigatoriedade de ser apreciada por uma assembléia, como seria necessário caso tal pagamento fosse considerado um componente de remuneração.

Alegam, ainda, os administradores, que teriam consultado renomadas firmas internacionais para justificar o pagamento. Consultados, esses prestadores de serviço, por sua vez respondem que nenhum deles avalizou o pagamento per se. O que aparentemente aconteceu foi uma construção sofismática que busca levar à conclusão de que o executivo deveria receber duas vezes: (1) sua remuneração pelo cargo e (2) a compensação pelo contrato de não competição.

Importante frisar que contratos de não competição são prática comum no mercado. Um executivo, ao sair da companhia, pode receber um pagamento para que não vá para a concorrência, levando expertise adquirida em função do exercício das suas atribuições na companhia anterior. Contudo, isso só pode acontecer após a renúncia ou demissão, nunca antes. Recebe-se salário ou non compete. Nunca os dois concomitantemente.

Um pagamento dessa magnitude, ao arrepio da remuneração aprovada em assembleia, não parece encontrar guarida legal. Adicionalmente, no caso específico, o valor é muito representativo para a companhia, pois monta a 40% do lucro liquido dos últimos 12 meses.

Se configurada a liberalidade às custas da companhia – o que parece ser o caso – nos vemos diante de uma nova forma de causar prejuízos aos acionistas minoritários que acreditam em nossas empresas. Trata-se de atitude que potencialmente fere a credibilidade de nosso mercado de capitais, devendo, portanto, ser não apenas coibida, mas exemplarmente punida, tanto no nível administrativo como no judicial. Registre-se que a Amec, cumprindo seu papel de defesa dos acionistas minoritários, já levou esses pontos tanto para a CVM como para o Ministério Público. Mas isso não basta.

Este caso traz à tona uma discussão ainda maior pois aparentemente configura um desvio de recursos da companhia para beneficiar seus gestores. É a “liberalidade às custas da companhia”, prevista no Artigo 154, inciso II da Lei 6.404/76. Porém apesar de ilegal, não configura crime. E isso precisa ser repensado.

O Brasil infelizmente não tem a exclusividade de casos assim. No início do milênio, vimos uma série de casos nos Estados Unidos que são muito parecidos com os atuais. John Rigas, fundador e principal executivo da Adelphia, foi acusado de utilizar bens da companhia em seu próprio benefício. Dennis Kozlovski, da Tyco, da mesma maneira – este ficou famoso por comprar uma cortina de banheiro por USD 6 mil e um porta guarda chuvas por USD 15 mil, além de ter pago metade da festa de aniversário de sua esposa com recursos da companhia, ao custo de USD 1 milhão. O primeiro foi condenado a 15 anos de cadeia. O segundo a até 25 anos.

No Brasil, ao menos por enquanto, ninguém será preso por liberalidades às custas da companhia, pelo simples motivo de o artigo 154 não configurar crime. As punições máximas são multa e inabilitação pela CVM, podendo (de forma improvável, dados os precedentes) levar à indenização dos prejuízos causados ao mercado. Levando em conta a experiência internacional e os prejuízos impostos aos stakeholders da companhia, trata-se de punição branda demais.

Já é passada a hora de debatermos a criminalização do desvio corporativo. Aqueles que são fiéis depositários da confiança do mercado de capitais precisam ser exemplarmente punidos quando traem essa confiança.

Na verdade, pôde-se argumentar que a apropriação de ativos corporativos possui agravantes em relação a outros crimes, por pelo menos duas razões. Quando falamos de uma companhia de capital aberto, estamos falando daquilo que os americanos chamam de public corporation. A empresa aberta é pública no sentido em que capta recursos do público. Estamos falando de poupadores, pensionistas e outros que depositam no nosso mercado de capitais a confiança num futuro melhor. São essas as pessoas prejudicadas quando se subtrai recursos de uma companhia aberta.

Além disso, a possibilidade de apropriação de ativos de uma companhia aberta, se deixada impune, leva à percepção de que isso pode acontecer com qualquer empresa. Cria-se um dano à reputação do nosso mercado de capitais, afastando investidores e aumentando o custo de capital para todas as empresas – inclusive aquelas lideradas por administradores honestos e competentes. Cria-se menos empregos e menos desenvolvimento.

É por tudo isso que a Amec propõe que, em reforma vindoura da Lei 6.404/76 e da Lei 6.385/76, seja incluído entre os crimes contra o mercado de capitais a prática de liberalidade às custas da companhia, principalmente se em benefício próprio. A criminalização desta prática deve vir acompanhada de uma ação incisiva do Ministério Público, visando coibir o crime corporativo e preservando a confiança em nosso mercado de capitais, como já prescreve a Lei 7913/89.