Reforma da 555 representa passo importante para modernizar setor
A audiência pública da reforma da instrução CVM (Comissão de Valores Mobiliários) 555 trouxe aperfeiçoamentos que prometem revolucionar a indústria de fundos. As propostas oficializam práticas que trazem eficiência, além de aproximar o setor de padrões internacionais.
“A reforma representa um ganha-ganha para a economia, principalmente no momento em que o Estado tem dificuldade para investir. Os fundos podem ser o motor de investimento em infraestrutura, concessão e privatização. Não adianta ter investidores com apetite para investir, mas sem veículo adequado e com proteções”, avalia Pedro Rudge, membro do Conselho da Amec.
Acumulando a posição de Diretor da Anbima, Rudge coordenou o grupo de 160 pessoas de 70 instituições que trabalhou nos últimos meses para preparar as sugestões, que foram reunidas em um material de 500 páginas. De acordo com ele, após sua edição, o conjunto de propostas deve trazer redução de custos ao setor, aumento de escala e mais segurança aos investidores locais e internacionais.
A reforma adapta muitas regras da indústria de fundos à Lei de Liberdade Econômica, sancionada pelo governo federal em 2019. Um exemplo que a minuta traz nesse sentido é um protagonismo maior para os prestadores de serviços essenciais, os gestores e administradores. Na proposta, o gestor não será mais contratado pela administradora. Ambos constituirão o fundo e o gestor passará a contratar os distribuidores.
“Esse é um exemplo de prática do mercado que deve ser oficializada. O que fica claro com a mudança, além de maior responsabilidade do gestor, é que não deve existir solidariedade entre os prestadores de serviços. Isso traz segurança jurídica, já que ainda havia dúvida se o gestor deveria ser solidário ao administrador e vice-versa”, afirma o Diretor da Anbima.
Daniel Celano, diretor-presidente da Schroders no Brasil, que também participou das discussões, entende que essa mudança deverá vir acompanhada de governança e clareza das responsabilidades de gestor e administrador, além de mais educação financeira dos investidores e constituição de boards com membros independentes, no mesmo conceito que a Amec defende.
“Há vontade e direção da CVM de separar responsabilidades, alinhando a indústria de fundos brasileira com a internacional, mas é prematuro saber como isso se dará na prática e como será a fiscalização da CVM. Supervisionar meia dúzia de administradores é diferente de 500 gestores que existem no Brasil, ou mesmo 100 gestores que têm massa crítica de ativos sob gestão”, avalia.
Marcelo Ferraz, responsável pela área de Securitização na XP e coordenador da Comissão Temática de Direitos Creditórios da Anbima, participou das discussões com foco nas propostas para os FIDCs (Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios). Ele avalia que a instrução 356 de FIDCs teve uma reformulação em 2013, e com a instrução 531 já havia uma alteração no papel dos prestadores de serviços, principalmente os custodiantes, no sentido de reforçar a verificação de lastro, dado o volume de transações.
Na época, o regulador trouxe ônus para os custodiantes ao exigir que eles fizessem as verificações e, desde então, a tecnologia permitiu à indústria se modernizar. “Para a CVM, era necessário que prestadores e custodiantes tivessem papel relevante. E formalizou na norma que pagamentos de direitos creditórios fossem realizados em instituições de pagamento vinculadas e não apenas em contas bancárias vinculadas, o que já era uma prática”, afirma.
Para Ferraz, a não solidariedade entre os prestadores de serviços deve deixar mais clara a atividade de cada uma das partes. Nesse contexto, outra alteração importante da CVM foi focar nas atribuições. Algumas atividades do custodiante que eram obrigatórias na norma anterior, como recebimentos de pagamentos e guarda de documentos, passam a ser facultativas e feitas por outros prestadores de serviços.
Limitação de responsabilidade
Outro avanço para os cotistas, fruto da Lei de Liberdade Econômica, é que os fundos devem passar a ter limitação de responsabilidade. Assim, fundos que tiverem patrimônio líquido negativo não deverão obrigatoriamente receber recursos de cotistas e, em inadimplência, poderão recorrer a empréstimos. “Essa regra aproximou os fundos da lei das S.As. Quando uma empresa listada em bolsa quebra, os acionistas perdem tudo, mas não precisam colocar mais dinheiro. Esse é um ponto relevante quando se trata de investidor estrangeiro, que ficou avesso a investir em estruturas locais porque pode ser chamado a pagar uma conta maior do que esperava”, avalia Rudge.
Ele destaca que a lei dá liberdade para o fundo manter ou adotar a limitação e acredita que a maioria dos fundos vai colocar limitação de responsabilidade, principalmente os estruturados, que podem ser mais concentrados e ter resultados negativos. A mudança, ressalta, coloca a indústria brasileira muito próxima a padrões mundiais e mais desenvolvidos, melhorando a atratividade do produto fundo. Uma consequência é que os fundos poderão quebrar e ficar insolventes. No novo arcabouço que o cotista não é obrigado a pagar as contas do fundo, ele pode ficar devedor e deixar a dívida com o credor, podendo acessar ferramentas que hoje não são possíveis como a tomada de crédito.
Redução de custos
A minuta também traz mudanças nas estruturas dos fundos, que demandarão alterações operacionais e de sistemas. A possibilidade é que fundos sejam divididos em classes, com patrimônios segregados. Ou seja, uma espécie de “fundo mãe”, que abarca fundos de Renda Fixa, Ações e Multimercado, sem que as classes se contaminem. Se uma tiver retorno negativo, os cotistas das outras classes não serão atingidos por esse tipo de evento.
“Isso é interessante porque reduz custos. Em vez de criar fundos diferentes para essas estratégias, será possível criar um fundo guarda-chuva e segmentar com classes, mas sem os mesmos custos que um fundo sozinho tem. Além disso, simplifica os trabalhos operacionais existentes hoje e eleva a produtividade para gestores e administradores”, afirma Rudge. No Brasil é utilizada a estrutura de FICs que são investidos no Master Feeder, o que gera uma duplicidade de camadas de fundos.
Outra mudança de estrutura é o conceito de subclasse nos fundos, a diferenciação de termos econômicos e de liquidez. Nele, uma mesma classe de ativo pode ter subclasses com prazos de resgate e taxas de administração diferentes, de acordo com o público. “Esse conceito é interessante para criar diferenciação sem a necessidade de criar novos fundos, o que traz a possibilidade de aumento de escala”, diz.
Segundo Rudge, o mercado aproveitou o momento da audiência pública para sugerir avanços ainda maiores, como a adoção da ferramenta side pocket, que é a possibilidade de cindir automaticamente um fundo caso ele tenha problema de iliquidez nos ativos. Nas regras atuais, se parte de um fundo ficar ilíquido, por qualquer razão, é necessário fechar o fundo inteiro para não haver o risco de um cotista sair e deixar os demais sem liquidez. “No side pocket, se houver falta de liquidez em 10% dos ativos, é possível fazer um corte do fundo e deixá-lo em uma estrutura fechada, a qual não há resgate, e 90% do fundo fica na estrutura atual. É uma cisão que cria um fundo líquido e um ilíquido”, explica o Diretor da Anbima.
Ferraz, da XP, destaca que a modernização de medidas acaba eliminando parte dos custos previstos na norma 356 para os FIDCs, como taxas de registro. São mudanças que têm repercussão na composição de custo. Além disso, a conciliação passa a ser realizada pelas entidades registradoras e não mais pelo custodiante, que fará a verificação do lastro trimestral para os créditos. “São flexibilizações bem relevantes e permitidas aos FIDCs voltados ao investidor profissional, que têm capacidade de entender os riscos associados”, observa.
Celano, da Schroders, afirma que a reforma vem para melhorar, mas o desafio é grande. “É difícil saber o que vai sair da audiência. Será que a classe de cota será adotada? Na segunda rodada de conversas, será preciso que o regulador mostre um incentivo claro para um gestor mudar de fundo Master Feeder para classe de cota”, afirma. Segundo ele, se a modalidade de classe de cota exigir balanço, demonstrações financeiras, auditoria, taxas Cetip e CVM, exigências que, na prática, tiverem o mesmo custo dos FICs e dos Master, o mercado pode não se sentir estimulado”, analisa.
Mudanças em alocação e recompra
A minuta também traz a possibilidade de aumentar o limite de investimento no exterior para os fundos, o que resolve uma assimetria que ocorre no mercado, na qual o investidor individual pode alocar 100% em BDRs, mas estruturas profissionais têm limites de 20% a 40%. “Vamos ter oferta de produtos melhores, que vão ao encontro ao que investidores estão buscando, que é diversificação maior”, afirma Rudge. Outra proposta é que fundos listados em bolsa, assim como as empresas abertas, possam recomprar suas cotas quando o preço está baixo, prática que também é comum no exterior.
Outra mudança positiva, de acordo com Ferraz, é que os FIDCs poderão ser vendidos para investidores de varejo, desde que o veículo ofereça um grau de proteção maior ao investidor. Para o gestor que tem como público final o varejo, há a possibilidade de diversificar a carteira com esse produto.
Rudge disse que o tema mais complexo da minuta envolveu os limites de alavancagem dos fundos, justamente por ser técnico. A CVM trouxe a sugestão que o limite fosse de 10% para fundos de varejo e de 50% para qualificados. A Anbima propôs que os limites não sejam definidos pelo público-alvo do fundo e sim por classe. Os limites propostos são de 10% a 20% para fundos de Renda Fixa, até 40% para Ações e Cambial, até 70% para Multimercado e sem limite para Long & Short.
“Acredito que, de todos os temas, esse deve ser debatido por mais tempo. No mundo é difícil definir alavancagem. Há também desafios operacionais, pois a indústria tem mais de 20 mil fundos que precisarão se adaptar a mudanças que não são simples. Também há desafios operacionais, de controles e de sistemas”, afirma Rudge. Ele estima que após a promulgação da regulamentação pela CVM, prevista para o fim deste ano, a implementação das mudanças pela indústria leve de um ano e meio a dois anos.
Celano prevê que o órgão regulador deve ler todas as contribuições do mercado e voltar às discussões, o que deve trazer clareza sobre as mudanças viáveis. “Nos próximos meses, as conversas serão sobre os detalhes, mitigação de riscos e materialidade. Muito do que o mercado pediu não é de fácil resolução, mas a CVM está fazendo um bom trabalho e na direção correta”, conclui.