Salvaguarda necessária ou excesso? Especialistas debatem o papel do conselho fiscal
O debate sobre o direito à instalação do conselho fiscal nas empresas, previsto na Lei das S.A, vem ganhando novo fôlego no Brasil à medida que mais empresas listadas adotam o comitê de auditoria em suas estruturas organizacionais. O tema opõe especialistas que apontam redundância nas funções das duas estruturas aos que defendem a função de controle do conselho fiscal.
O conselho fiscal é uma estrutura organizacional presente na legislação brasileira desde 1940, mas suas origens remontam ao século 19. A Lei das S.A. estabelece que os acionistas devem escolher os membros em assembleia, com o mandato de fiscalizar a administração, verificando o cumprimento dos seus deveres legais e estatutários.
Já o comitê de auditoria, cuja atribuição é auxiliar o conselho de administração, passou a ser adotado após o boom de IPOs de 2006-2008, atendendo a demandas de investidores estrangeiros interessados em cumprir com as práticas de governança determinadas pela Lei Sarbanes-Oxley (SOX), nos EUA. Mas a popularização ocorreu a partir de 2018, quando a B3 determinou que todas as companhias listadas no Novo Mercado tivessem um comitê de auditoria formado por pelo menos três membros, sendo um deles independente.
Segundo dados obtidos pelo Panorama Amec, o comitê de auditoria está ganhando espaço nas empresas brasileiras. Refletindo a exigência da B3, estudo recente do ACI Institute Brasil mostrou que 75% das empresas ouvidas adotam tal instância, enquanto 61% contam com o conselho fiscal. Apenas 18% das empresas consultadas mantêm ambas as estruturas. (Veja reportagem nesta edição para conferir a íntegra do estudo.)
Os dados refletem a opinião de alguns especialistas, como o conselheiro independente José Guimarães Monforte, de que, na prática, as atuações do conselho fiscal e do comitê de auditoria são similares, e que manter ambos gera retrabalho e consequente ônus financeiro para as companhias.
“A lista de tarefas do conselho fiscal é muito semelhante à de um comitê de auditoria. Desde que exista um comitê de auditoria estatutário, constituído por conselheiros independentes, seguindo as regras da SOX, não vejo razão em manter o conselho fiscal”, diz.
Além disso, Monforte acredita que a atuação dos conselhos deve ser sempre alinhada aos melhores interesses da empresa, o que implica que os conselheiros fiscais não representam necessariamente apenas os interesses dos acionistas.
Para o CEO da Amec, Fábio Coelho, diferentemente do mercado norte-americano, a maioria das empresas brasileiras tem estrutura de capital concentrada e com pouca representatividade de acionistas no conselho. Portanto, avalia que é necessário garantir mecanismos de supervisão independentes para buscar o equilíbrio entre os diferentes acionistas.
“Tenho dificuldade em avaliar que o conselho fiscal e o comitê de auditoria, como existem hoje no Brasil, podem ser intercambiáveis. Como o comitê de auditoria não é estatutário no Brasil, ele se submete justamente ao conselho de administração, e, portanto, não tem autonomia para fiscalizá-lo”, explica Fábio, acrescentando que a existência de conselheiros fiscais mais independentes e com responsabilidade estatutária permite que atuem para minimizar conflitos.
Na mesma linha, Reginaldo Alexandre, conselheiro de empresas e ex-presidente da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec), destaca que o conselho fiscal sofre críticas por ser uma espécie de incômodo para a administração. “Como órgão independente, incomoda mais aos controladores. É um instrumento dos minoritários para fiscalizar a administração, por isso, constitui muitas vezes um fator de desconforto”, diz.
Papel fiscalizador
Como representante direto dos acionistas, a atuação dos conselheiros fiscais deve ser bastante ampla, envolvendo um olhar independente sobre as demonstrações financeiras e apuração dos atos de gestão praticados, quase sempre em um grau de detalhe que não chega ao conhecimento dos acionistas, explica Ricardo Magalhães, sócio da gestora Argúcia. No entanto, ele nota que é muito comum que esta instância de governança seja usada principalmente para investigar atitudes ilícitas.
Esta atuação levanta questionamentos como o da conselheira de administração e fiscal e coordenadora de comitês de auditoria de diversas empresas, Lúcia Casasanta, sobre a efetividade do órgão. “É muito complicado fiscalizar os atos da administração de maneira efetiva. Dificilmente a atuação do conselho fiscal é mais eficaz do que a da auditoria externa”, diz.
Essa percepção decorre do fato que, muitas vezes, o conselho fiscal conta com membros mal capacitados, explica Casasanta: “vejo a indicação de muitos ex-profissionais das próprias empresas, que ganham a posição como prêmio pelos serviços prestados. Isso faz com que o indicado tenha pouca independência, comprometendo o bom funcionamento do conselho fiscal”.
Por este motivo, a conselheira se opõe à instalação de conselhos fiscais permanentes. No entanto, reconhece que em situações especiais, como em conflitos de interesses em que os sócios não chegam a um acordo, o órgão é uma ferramenta útil.
“Presenciei muitos conselhos fiscais funcionando bem no processo de privatização das estatais no final dos anos 90. Por exemplo, no processo de privatização da Telebrás, o conselho fiscal atuou decisivamente em prol da boa governança”, lembra.
Melhores escolhas
Um dos obstáculos para constituir conselhos fiscais com membros mais qualificados se encontra, nas deficiências do formato atual do Boletim de Voto à Distância (BVD), formato usado principalmente para permitir a participação de investidores estrangeiros em assembleias.
“O fato da indicação de nomes para o conselho fiscal não serem incluídos, por exemplo, no boletim de voto à distância, faz com que investidores, de uma maneira geral, e as próprias companhias, não se esforcem para sugerir bons nomes para a eleição nas assembleias”, diz o CEO da Amec.
Ele aponta que, além de questionar sobre a instalação do conselho fiscal, os estrangeiros deveriam ter caminho facilitado para também indicar nomes. “Entendemos que, se isso acontecer, os próprios investidores estrangeiros e, por consequência, os locais, conseguirão pensar na composição do conselho fiscal com mais antecedência. E o fato desses nomes serem também avaliados pelas agências de proxy voting aprimoraria a busca por bons candidatos”, comenta Fábio Coelho.
Apesar das dificuldades, Alexandre acredita que a formação dos conselhos fiscais tem sido aprimorada nos últimos anos e que, atualmente, há muitos exemplos positivos de conselhos fiscais mais atuantes. “Os fundos mais ativistas são responsáveis por uma diligência mais forte e isso está incentivando a busca de pessoas mais qualificadas para exercer a função”, diz o ex-presidente da Apimec.
O caso da Petrobras, em que o próprio Alexandre atuou como conselheiro fiscal entre 2013 e 2019, é um exemplo emblemático. Antes desse período, a estatal não contava com conselhos de administração e fiscal verdadeiramente autônomos. A partir de uma articulação de acionistas, com participação ativa da AMEC e de outras entidades, houve uma mobilização para eleger conselheiros independentes para os conselhos da petroleira. “A AMEC abraçou naquele momento a instalação de conselhos mais independentes para a Petrobras, o que foi fundamental para o aperfeiçoamento da governança da companhia”, comenta.