Sobre Bodes, Jabuticabas e Esperança
“Não existe risco jurídico no país”
Dilma Rousseff, setembro de 2013
Warren Buffett dizia que é quando a maré baixa que vemos quem está nadando pelado. E nos últimos anos a maré definitivamente baixou. Depois da recuperação econômica vivenciada até 2010 – principalmente por conta de o mundo não ter acabado – todos os países têm lutado contra limites significativos à sua taxa de crescimento. No Brasil as coisas não são diferentes… apenas magnificadas. Tivemos um crescimento extraordinário em 2010, e decepções atrás de decepções nos anos seguintes.
A convivência com capitais escassos tem obrigado os governantes a competir por eles – um verdadeiro ‘concurso de beleza’, através do qual diferentes países demonstram suas oportunidades e suas práticas de proteção aos fornecedores deste capital. Trata-se, portanto de um momento auspicioso para uma associação como a Amec, cuja missão fundamental é defender os direitos dos investidores.
A apoteose deste concurso de beleza para o Brasil foi o discurso da presidente Dilma Rousseff em Nova York, recheado de depoimentos importantes como aquele que abre este artigo. Um marciano que chegasse à Terra naquele momento estaria desculpado em considerar o Brasil um dos mais atuantes na atração de capitais estrangeiros. Talvez ficasse curioso com a necessidade de se repetir tanto que contratos são cumpridos e que os investidores são bem-vindos, mas a impressão geral seguramente seria positiva.
Este marciano ficaria muito surpreso em ver a capa da revista The Economist no dia seguinte. Afinal, qual é o Brasil real?
A resposta está nos atos, não nas palavras.
Se o governo brasileiro de fato percebeu o impacto – ainda que involuntário – de determinadas medidas na atratividade do país como destino de investimentos, assistiremos nos próximos meses uma verdadeira reversão na forma de atuação do setor público. Alguns sinais são positivos, como a anunciada redução do market share do setor público nas operações de crédito da economia, a ênfase nos leilões e concessões para o setor privado e as declarações da presidente da Petrobras sobre realismo tarifário.
Contudo, mais do que os detalhes dos editais ou a atratividade deste ou daquele leilão, nosso amigo marciano deve prestar atenção para as questões que realmente trazem impactos no longo prazo – seja por sua perenidade nos processos decisórios, seja pela indicação que fornecem sobre o entendimento do setor público – incluindo os formuladores de política e a burocracia – quanto ao seu papel de indutor do desenvolvimento.
E aqui chegamos a uma oportunidade ímpar. No mês passado a Receita Federal publicou a Instrução Normativa 1.397 que, em síntese: (1) determina a dupla escrituração contábil das nossas empresas e (2) indica a necessidade de recolhimento de impostos retroativos sobre determinadas distribuições de lucros. Numa só tacada, o Leão conseguiu disferir dois golpes mortais, pelas costas, ao discurso da presidente Dilma: determinou o aumento de custos das nossas empresas, reduzindo sua produtividade, e gerou mais uma incerteza sobre quem acredita no país. Parece uma obra feita sob medida para o diagnóstico do saudoso ministro Mario Henrique Simonsen, segundo o qual “no Brasil até o passado é incerto”.
Ainda que se diga que o país tem instituições sólidas para defender os contribuintes da sanha arrecadatória federal; ainda que os juízes em última instância concordem que trazer uma interpretação retroativa fere de morte princípios fundamentais do direito; ainda que se conclua que na realidade é quase impossível até mesmo determinar quanto deve ser pago e por quem; na melhor das hipóteses a única consequência da citada Instrução será transbordar nossos já inundados tribunais com ações tributárias. Do ponto de vista prático, a Receita Federal estará onerando nossas empresas em custas e tempo, e adicionando em seus balanços mais uma linha às já multibilionárias contingências fiscais, que consomem capital de giro e impedem a visualização do real retorno dos investimentos em nosso país. Isso tudo para coletar mais alguns vinténs.
Mas as consequências não param aí. Se tivermos que eleger um único objetivo para permitir uma mudança no padrão de crescimento de nosso país, dificilmente escolheríamos outro parâmetro que não a elevação de nossa combalida taxa de poupança. Ao impor uma nova taxação – retroativa, repita-se – às distribuições de resultados aos acionistas, pune-se mais uma vez aqueles que acreditam no futuro do país. O mercado de capitais, cuja função social é canalizar a poupança privada para o setor produtivo, atrofia-se, e nos leva de volta a um passado confiscatório que tantas oportunidades nos custou.
Curiosamente, isso tudo acontece num momento em que as maiores entidades do mercado de capitais conseguiram se unir em torno de uma nova agenda positiva. Em agosto, uma caravana dessas entidades, incluindo a Amec, esteve em Brasília interagindo com lideranças dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Com a possível exceção de uma reunião, os presidentes das entidades retornaram a São Paulo com a certeza que os interlocutores compreenderam a mensagem que foi passada: o mercado de capitais é importante para o desenvolvimento do país, e recentes políticas públicas talvez tenham pecado por não considerar este segmento no processo decisório. Todos querem mais investimentos, mais transparência, mais credibilidade e, no fim do dia, mais crescimento e mais emprego.
Foi esta viagem – e os depoimentos das autoridades visitadas – que fazem deste artigo aparentemente triste, na verdade uma história de esperança. A sensação é que a direção do transatlântico já começou a mudar. Os agentes públicos conseguem perceber que a mensagem dos investidores não é necessariamente autointeressada. Ela é comum ao interesse nacional. Se as políticas públicas levarem em conta a proteção aos investidores, todos lucram. A começar pelo governo.
É nesse contexto que a Instrução Normativa 1.397 deve ser considerada o canto do cisne de uma abordagem regulatória alienada da vida real. O processo de diálogo que sua edição criou, com a forte reação de entidades normalmente recatadas, como CFC e Abrasca, tende a acelerar o giro do transatlântico na direção correta, que pode começar a reverter a imagem do Brasil como destino de investimento.
O primeiro resultado deste processo já aconteceu. Em entrevista ao jornal Valor Econômico em 3 de outubro, o secretário da Receita Federal descartou a cobrança retroativa. Um dos três problemas – a retroatividade – da instrução parece resolvido. A esperança é que os demais problemas – dupla contabilidade e taxação de dividendos – também sejam revertidos.
Sentimo-nos autorizados a entender que os bodes começaram a ser retirados da sala. Ponto para a visão otimista do nosso marciano. E ponto para as entidades que se mobilizaram para sensibilizar o setor público. Mas o desafio dessa vez é não nos contentarmos com a retirada do bode da sala.
Vamos matar o bode.