Um Discurso Revigorante
O discurso do presidente da CVM, Leonardo Pereira, no 6º Congresso da BM&F Bovespa em Campos do Jordão foi particularmente importante e interessante dado que se dedicou ao cerne das atividades da CVM.
Em aproximadamente 40 minutos, o regulador do nosso mercado de capitais trouxe aos cerca de 600 participantes do Congresso uma visão ampla das prioridades e iniciativas da CVM. O membro atento da plateia saiu do evento com uma percepção clara da direção do regulador nos próximos anos e de alguns dos pontos que estão sendo preparados nas áreas técnicas da autarquia.
Um dos pontos mais importantes, seguramente, foi a menção ao Plano Estratégico da CVM. Trata-se de um processo que já dura vários meses e contou com a participação de 650 investidores e 50 agentes do mercado (incluindo a Amec) para ajudar a construir a agenda de longo prazo da entidade. Ainda que não tenhamos recebido o produto final desse processo, fica cada vez mais claro que essa importante iniciativa segue a tradição da casa: ouvir, analisar e só depois regular.
Essa tradição é não apenas salutar para nosso mercado de capitais. Ela deveria ser utilizada como um exemplo para toda a atividade regulatória no Brasil. A relação de parceria que a CVM conseguiu estabelecer com seus regulados é exemplo de como surpresas negativas possam ser evitadas. A transparência beneficia ambos os lados, pois regulados podem se preparar para as novas medidas sendo estudadas e o regulador pode ouvir as potenciais consequências dos seus atos, antes que eles sejam aplicados. Deveria ser de modelo para todas as demais atividades regulatórias no Brasil.
Imagine o leitor como seria melhor a nossa vida se essa prática fosse adotada por outros órgãos reguladores. Tomemos o setor elétrico, que tantas noites de sono custou aos investidores e operadores ou ainda os temas tributários. Como seria melhor se governo e os agentes pudessem conversar de maneira formal antes de novidades regulatórias… Quantas ações deixariam de tramitar nos nossos congestionados tribunais? Quantos bilhões seriam economizados em erros evitados?
A Amec tem se esforçado em contribuir em cada uma das audiências públicas organizadas pela CVM que tocam sua missão de defender os acionistas minoritários das empresas brasileiras. Somente neste ano, oferecemos contribuições para as mudanças na Instrução CVM 480 e na Instrução CVM 391. Além disso, protocolamos outras sugestões que, ainda que fora de audiências públicas formais, têm sido utilizadas pela CVM em sua reflexão sobre evolução regulatória.
O presidente da CVM fez menção às audiências públicas como ferramenta fundamental do processo regulatório. “Estamos ouvindo o mercado”, disse o presidente. Que continue assim.
Outro ponto importante do discurso diz respeito às normas contábeis. Reproduzimos abaixo uma parte do discurso que toca esse tema:
“Como falei ao chegar na CVM, o processo de implementação do IFRS foi muito bem feito no Brasil mas eu acreditava que havia alguns pontos que merecem atenção nessa fase de consolidação. O IFRS foca na substancia e dá margem a interpretações. Assim, se não houver uma continua capacitação dos agentes nesse assunto e uma discussão mais ampla quando uma norma é colocada em audiência pública, podemos perder qualidade e não evoluirmos na questão da qualidade das demonstrações contábeis e se prendendo a quantidade e a forma.”
A Amec só pode comemorar essa fala. Ao longo de 2013, temos apontado uma série de problemas decorrentes da implementação do IFRS no Brasil. Temos a consciência que os investidores podem ter falhadoao não participarem das audiências públicas promovidas pelo IASB e pelo CPC. “Nostra culpa”.
Porém, os problemas estão aparecendo. A primeira reflexão que fizemos foi com relação às normas de consolidação. Através da Carta Presi 07/2013, alertamos a CVM que o fim da consolidação proporcional significava uma redução na transparência das demonstrações contábeis brasileiras. Os investidores não têm mais condições de analisar a realidade econômico-financeira das empresas com muitas coligadas. Além disso, o uso do conceito de “controle” permite que algumas transações sejam especificamente desenhadas com o objetivo de atingir determinado tratamento contábil – normalmente a não consolidação de entidades muito endividadas. Temos pelo menos uma transação em andamento neste momento que claramente é impactada por essa ‘contabilidade estratégica’. É um procedimento inadequado para um mercado que se pretende maduro. Outro problema identificado e discutido pela Amec diz respeito à adoção da contabilidade de hedge por parte de algumas empresas. Alguns associados ficam com a impressão que em determinadas situações a essência está sendo ignorada em favor da forma – o oposto ao que o IFRS se propunha a fazer. Se as empresas adotarem – e a CVM permitir – contabilizações que atendam a forma dos pronunciamentos, mas que induzam o investidor a erro, o edifício do IFRS correrá sério risco.
E o que não falar dos exercícios de impairment, que crescentemente impactarão as demonstrações contábeis? Se os processos de execução desses estudos, incluindo a escolha das premissas, forem muito discricionários e pouco transparentes, o usuário das demonstrações financeiras corre o risco de não saber mais a natureza dos números que lhe são apresentados.
Como disse o presidente da CVM, “o IFRS foca na substância e dá margem a interpretações”. Sem dúvida a capacitação dos agentes para compreender essa filosofia é importante. Mas, talvez não seja suficiente. A postura de fazer “o que dá”, tendo em vista determinados objetivos ‘estratégicos’ da administração e não “o que se deve fazer” deve ser evitada. Investidores e reguladores devem ficar atentos. Nas palavras do próprio “xerife”:
“…é importante focar em estruturas que assegurem que o processo de tomada de decisões se dê no interesse social e em políticas que assegurem a prestação de informações claras, precisas e de forma homogênea.”
“Só para concluir esse ponto: a questão de divulgar e usar a informação de forma correta é fundamental! Não podemos, nesse aspecto, portanto, do lado do regulador e dos autorreguladores, ser tolerantes no processo de supervisionar, fiscalizar e sancionar, quando o caso exigir. Estamos falando de credibilidade e aqui não deve ficar dúvidas!”
Mais uma vez, música para nossos ouvidos. O regulador demonstrou estar consciente da importância desse assunto para a credibilidade do nosso mercado de capitais. Cabe aos investidores, portanto dividir com a CVM suas preocupações, para que possamos caminhar para demonstrações financeiras cada vez mais confiáveis.