Virtus in medium est
Se o mercado é eficiente, por que há discriminação com as ações preferenciais?
Perguntas como essa são repetidas com toda a fleuma pelos liberais mais radicais na hora de criticar muitas das iniciativas regulatórias no mercado de capitais. Seus proponentes partem do princípio que não cabe ao estado tutelar o investidor, uma vez que este deveria ter a obrigação de entender o que faz com seu dinheiro. Caveat Emptor, bradam os libertários.
Alto lá.
Merton Miller dizia a seus alunos que os liberais – como ele e seus colegas de Chicago têm orgulho em ser identificados – não são arruaceiros. Eles não são contra sinais de trânsito. Muito pelo contrário. Para que o mercado possa funcionar é importante que existam regras. E que elas sejam respeitadas. Sem isso, não há mercado.
O teste de ouro sobre a “desejabilidade” de uma regra é uma análise de custo-benefício social. Comparam-se os ganhos e perdas, tanto privados quanto públicos e, caso o resultado seja positivo, a regra deve ser posta. Infelizmente tal análise raramente é feita no Brasil. Oscilamos, portanto como um pêndulo entre os excessos intervencionistas e o laissez faire oportunista – ambos com pesados custos sociais.
O raciocínio cabe como uma luva nos dilemas do mercado de capitais brasileiro. Não é preciso uma tese de mestrado para mostrar que nos encontramos hoje num ‘equilíbrio ruim’, com cerca de 300 companhias abertas (a Índia tem 6000) e menos de 1% da população com exposição ao mercado de ações. Há algo errado com nossa estrutura institucional que não tem permitido o desenvolvimento do mercado de capitais. Há excesso de regras? Há falta de regras ? Há problemas de enforcement? A resposta mais provável é: sim, sim e sim.
Comecemos pelas questões de governança corporativa. No início do milênio formou-se forte consenso de que muitos dos problemas de nossas companhias abertas vinham do desalinhamento de interesses entre acionistas controladores e minoritários. A reforma da lei das SAs tentou minimizar o problema, reduzindo o limite para emissão de ações sem direito a voto, recriando o tag along e facilitando a eleição de administradores independentes. Já o Novo Mercado reforçou o tag along integral e proibiu ações sem direito a voto. A CVM foi pelo mesmo caminho, fortalecendo o Comitê de Auditoria e criando ritos para minimizar conflitos em transações com partes relacionadas. Mudanças assim prepararam o terreno para o ‘mini boom’ de IPOs que vivemos de 2004 a 2008.
Mas, não foram poucas as críticas. Dizia-se que o mercado de capitais brasileiro perderia competitividade ao impedir a existência de ativos diferentes, que podem ser úteis ou até mesmo necessários em determinadas situações corporativas. Empresas deixariam de abrir capital para se financiarem privadamente, com mais liberdade.
Feitas as reformas, o campo de debate se deslocou para as regras e decisões da CVM e dos órgãos autorreguladores. A dicotomia entre controladores e minoritários – que se imaginava superada com o advento das corporations – voltou a pautar as lides e as decisões. Deve o regulador ‘tutelar’ o investidor, como se este fosse hipossuficiente, ou simplesmente assegurar-se de que todas as informações estejam disponíveis, para que ele tome sua decisão?
Esta reflexão esteve presente, por exemplo, no julgamento da fusão da Oi com Portugal Telecom, na CVM. O voto condutor questiona se a autarquia deve intrometer-se nas questões entre os acionistas, que poderiam ser resolvidas pelo princípio majoritário ou, em caso de abusos, levadas aos tribunais competentes. A premissa parece ser que os investidores não são apenas racionais, mas que são indiferentes entre curto, médio e longo prazos.
A experiência tem demonstrado que esta abordagem não resulta num mercado de capitais mais saudável. E a razão fundamental está na estrutura institucional do próprio mercado.
Os participantes do mercado estão inseridos em arranjos institucionais que lhe são peculiares. Isso é verdadeiro para os principais ‘consumidores’ de títulos e valores mobiliários: fundos de investimento e fundos de pensão. São eles que, crescentemente, detém a propriedade dos ativos. Entender seu comportamento é, portanto fundamental para se chegar a uma adequada análise de custo/benefício da regulação. E para entender seu comportamento, o primeiro passo é compreender a estrutura de incentivos inerentes a estes entes.
Os fundos de investimento no Brasil são fortemente regulados, e possuem algumas características muito claras, em termos de administração de conflitos (através das segregações de funções entre administrador, gestor, custodiante, auditor, etc.), transparência (através da publicação de cotas e de carteiras) e de liquidez. A combinação entre regulação e concorrência levou à criação de produtos de altíssima liquidez, com poucas exceções de fundos que requerem prazos mais elásticos de resgate. Assim, por mais que muitos gestores se coloquem como ‘investidores de longo prazo’, seu longo prazo é tão longo quanto o for do seu cliente.
Esta fragilidade traz várias consequências, desde o desinteresse por emissões de companhias de médio porte – dada sua potencial falta de liquidez – até o próprio processo de investimento, que tende a focar mais nos triggers de médio prazo do que nos determinantes de valor a longo prazo. Surge, assim, um grupo de investidores – significativo – disposto a comprar ativos com características duvidosas, desde que enxergue suficientes motivos para alguém, no curto ou médio prazo, compra-los a um preço mais alto. Cria-se o mercado de latas de sardinha, no qual o conteúdo é menos importante do que a embalagem.
O problema se alastra e se avulta com o desenvolvimento dos fundos passivos. Vistos como uma ferramenta poderosa para que os investidores finais tenham menos custos, estes vêm ganhando mercado em todo o mundo, tornando-se donos de parcelas cada vez maiores das companhias listadas. Nestes fundos o problema da lata de sardinha é pior ainda: nem a embalagem importa. Se determinado ativo for ofertado em tamanho suficiente para integrar os grandes índices de negociação, estes investidores serão OBRIGADOS a comprá-los.
Desfaz-se assim a grande ilusão dos libertários da regulamentação do mercado de capitais. O caveat emptor não funciona! A proverbial Velhinha de Taubaté, que investe sua poupança num fundo ligado aos índices, é obrigada a comprar as latas de sardinha que forem oferecidas pelos bancos de investimento, desde que a oferta seja grande o suficiente.
Para não dizer que estamos focando casuisticamente no Brasil, vamos olhar para o mercado americano. Em 2004 o Google tem hoje um valor de mercado de USD 200 bilhões. A empresa representa 7.2% do índice Nasdaq-100. Não por coincidência, seus principais acionistas de mercado são fundos passivos (Vanguard, State Street, Barclays e etc.). Ou seja, gostando ou não da estrutura de supervoting shares, nossa Velhinha de Taubaté (ou as viúvas de Ohio) foram obrigadas a comprar suas ações. O raciocínio pode ser replicado inúmeras vezes, incluindo desde a capitalização da Petrobras em 2010 até o tão aguardado IPO do Alibaba.
Este que talvez venha a ser o maior IPO do mundo (USD 20 bilhões) traz mais uma vez à tona a questão do desalinhamento entre poder político e capital comprometido. Dada sua estrutura societária, a companhia não foi aceita na bolsa de Hong Kong – mas será recebida de braços abertos pelos americanos. Os ativistas estão horrorizados. Independente de qual a melhor abordagem – restritiva ou liberal – é certo que muitas viúvas comprarão a gigante do varejo eletrônico chinês sem saber ou mesmo opinar sobre a concentração do controle nas mãos dos fundadores.
Estes exemplos comprovam que a abordagem regulatória calcada exclusivamente na transparência não resolve o problema. Investidores comprarão ativos tóxicos não porque não sabem o que estão fazendo, mas porque a estrutura institucional os obriga a isso.
É crucial, portanto, que a estrutura regulatória determine os limites da criatividade financeira, no sentido de evitar a criação de estruturas enviesadas – doentes mesmo – que podem resultar da interação entre os interesses corporativos e os investidores atrelados a incentivos institucionais míopes. Manter uma estrutura eficaz de proteção ao investidor não significa considerá-lo hipossuficiente. Trata-se, até aqui, somente de uma compensação por incentivos tortos.
Ressalte-se que mesmo que estes incentivos não existissem, a ação regulatória de proteção se justificaria com base nas novas teorias sobre finanças comportamentais. Mas isso é assunto para outro artigo.
Claro que esses argumentos não podem indicar uma estrutura regulatória excessivamente amarrada. Se focarmos agora nos fundos de pensão, vemos que eles estão enquadrados em regulamentos ainda mais detalhados e prescritivos do que os fundos mútuos de investimentos. As resoluções do Conselho Monetário Nacional, que regulam o processo de investimento dos fundos de pensão, trazem a marca da mão pesada do governo. Ao criar uma estrutura completamente prescritiva, as normas removem dos gestores desses fundos os incentivos adequados para buscar as melhores opções para seus participantes. Fazer qualquer coisa diferente do que os outros fundos estão fazendo pode levar a ações administrativas e até penais aos gestores. Em outras palavras, se der errado, o gestor é crucificado. Se der certo, os incentivos costumam ser diminutos. Consequência: o efeito manada torna-se um poderoso fator para esses investidores.
Este contraexemplo nos permite dizer que a regulação não deve ser mínima nem excessiva. Ela deve estar baseada em uma análise de custo/benefício das normas e da interferência do Estado, buscando sempre a criação de estruturas de incentivo que busquem as melhores soluções financeiras de longo prazo, com o devido alinhamento de interesses entre todas as partes envolvidas. O raciocínio vale tanto para as normas como para o enforcement: cabe aos reguladores , autorreguladores e demais participantes do mercado sinalizar tempestivamente os limites do jogo, para que não fiquemos presos num equilíbrio ruim, como parece ser o caso. Se determinada norma existe e foi incorporada na precificação dos ativos, ela deve ser aplicada no seu espírito – e não de acordo com as teses casuísticas de assessores da operação A ou da operação B.
Como disse Aristóteles, a virtude está no meio.