Comparar conselho fiscal e comitê de auditoria é interpretação equivocada

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Há anos a figura do conselho fiscal têm sido alvo de polêmicas no Brasil. Sob acusação de ser um órgão de fiscalização caro e ineficaz, a instância de controle instaurada por acionistas é frequentemente criticada por alguns participantes do mercado, que defendem que seja substituído pelo comitê de auditoria.

Para o professor de Finanças da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Roberto Lamb, essa ideia é sinal de desconhecimento sobre as funções dos dois órgãos, cujas competências são totalmente distintas.

Membro da Comissão de Gerenciamento de Riscos Corporativos do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), conselheiro de diversas empresas e autor de vários artigos sobre o assunto, Lamb destaca que o Brasil está alinhado a padrões globais, uma vez que existem modelos semelhantes ao conselho fiscal da legislação brasileira em países da Europa, Japão e América Latina. Por outro lado, as críticas decorrem da necessidade de aprimoramento na estruturação do órgão, o que passa pela responsabilidade dos acionistas. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Qual sua opinião a respeito do debate sobre a sobreposição das atividades do conselho fiscal e do comitê de auditoria em uma empresa?

A dicotomia entre conselho fiscal e comitê de auditoria demonstra desconhecimento sobre a questão. A posição da CVM indica que eles não devem ser confundidos. O comitê de auditoria é assessor do conselho de administração, enquanto o outro fiscaliza a administração. Achar que um órgão que é assessor pode substituir o que é fiscal é uma demonstração equivocada da legislação.

Mas há risco de sobreposição de funções entre os dois órgãos?

Insisto que são funções completamente distintas. Vemos na Lei das S.A. que a competência do conselho fiscal é fiscalizar a administração, verificando o cumprimento dos seus deveres legais e estatutários. (A lei) diz que o conselho deve fiscalizar os atos da administração. Observe que a palavra ato não vem acompanhada por adjetivos na lei. Portanto, ato pode ser tudo. E, se o comitê de auditoria é um assessor do conselho de administração, como imaginar que ele possa fiscalizar este mesmo conselho?

Então de onde surgiu a ideia de que o comitê de auditoria poderia incorporar as atribuições do conselho fiscal?

A tendência de querer substituir o conselho fiscal pelo comitê de auditoria é, na verdade, uma artimanha para afastar do acionista a incumbência de fiscalizar a administração, que prefere dizer “eu mesma me fiscalizo”. A Lei das S.A. define claramente a instalação do conselho fiscal e diz que nem o estatuto, nem a assembleia podem impedir o acionista de fiscalizar os negócios da companhia.

Em quais circunstâncias o conselho fiscal deve ser instalado?

Empresas estatais devem ter um conselho fiscal de forma permanente, mas ele pode ser instalado ou não em empresas privadas, dependendo exclusivamente da vontade do acionista.

Há quem argumente que o conselho fiscal é prescindível, dado que não existe em alguns mercados. Poderia comentar essa ideia?

Dizer que em outros mercados não existe o conselho fiscal é algo muito genérico e indica desconhecimento da governança comparada. Quando se fala de outros mercados, geralmente estão se referindo aos Estados Unidos, Inglaterra e Austrália. Mas eu diria que, excluindo esses três países, quase todo mundo tem um órgão semelhante ao conselho fiscal. A Europa continental tem órgãos semelhantes, senão exatamente iguais. Por exemplo, a Itália, país que participa da OCDE, tem o collegio sindacale.

Por que no Brasil prevaleceu o modelo do conselho fiscal e só recentemente começou a se falar de comitê de auditoria?

Embora o comitê de auditoria já existisse no modelo de governança anglo-saxão antes, foi só em 1999, após o Relatório Blue Ribbon — base para a edição da Lei Sarbanes-Oxley (SOX) nos EUA em 2022 — que o comitê de auditoria passou a ter destaque.  No Brasil, as empresas de auditoria trouxeram abundantes estudos e aconselhamentos sobre o comitê de auditoria, impulsionando sua adoção.

Já o conselho fiscal é citado na legislação brasileira desde o Código Civil de 1850. A primeira lei que define que “toda sociedade terá um conselho fiscal composto de três ou mais membros encarregados de fiscalizar os negócios e prestar contas à assembleia” é de 1892. O texto da legislação do conselho fiscal da Lei das S.A. de 1976 é praticamente igual ao do Código Comercial de 1940 e o que está na lei de 1940 já existia em 1892. Portanto, essa estrutura de governança com a fiscalização do dono do dinheiro está impregnada dentro da legislação brasileira há quase dois séculos.

E o que seria o conselho fiscal “turbinado”?

Essa história de que precisa turbinar o conselho fiscal para atender à Securities and Exchange Commission (SEC) decorre de um completo desconhecimento da norma norte-americana. Há uma seção que se chama emissores estrangeiros na versão de 2010, em que a SEC escreve “olha, sabemos que em muitas jurisdições existem órgãos com dois conselhos, sendo que um é conselho supervisor”, como é o caso da Alemanha, Japão, Itália e do conselho fiscal no Brasil, que é citado com este nome. O parecer da SEC diz que quando este órgão é constituído dentro da legislação societária do país por membros independentes da administração, com objetivo de fiscalizá-la, este é o melhor órgão para atender à (lei) SOX. Observe, não sou eu quem está dizendo, é a própria SEC.

Mas essa não é uma exigência para empresas que têm ações listadas nas bolsas americanas?

Eu vou te dar o exemplo da Gerdau, uma empresa da qual eu fui conselheiro fiscal durante quatro anos, e que tem ADRs listados em Nova York. Na época, a Gerdau não tinha comitê de auditoria. O conselho fiscal, do qual eu participava, era responsável pelas obrigações da SOX perante a SEC. Nunca recebemos qualquer advertência, nenhuma comunicação da SEC. Eles mesmos escrevem que o conselho é melhor, então nunca houve esse problema.

E o argumento que já há um excesso de fiscalização sobre as empresas e que por isso o conselho fiscal não seria necessário?

Eu costumo ouvir isso mesmo: “nas companhias abertas do Novo Mercado, com ações listadas nos Estado Unidos, somos fiscalizados por todo mundo, não precisamos de mais um órgão de fiscalização”. Eu digo que a legislação brasileira dá ao acionista o direito de fiscalizar. E é justamente nas maiores empresas, aquelas mais estruturadas, que o minoritário é mais espezinhado. Pegue, por exemplo, o caso Petrobras, uma empresa de nível global, a gente vê o que já ocorreu de negativo ali.

E como lidar com problemas como a falta de capacitação dos membros do conselho fiscal e um nível de remuneração que não atrai os melhores profissionais?

É muito comum ouvirmos também que o conselho fiscal é inepto, não exerce sua função e, portanto, seria melhor não contar com sua existência. Mas daí eu pergunto: de quem é a culpa? Neste ponto, a responsabilidade é do acionista. Outro argumento para se desfazer do conselho fiscal é dizer que ele é mal remunerado. É claro que é mal remunerado. Porque quem escolhe a remuneração do conselho fiscal é a administração. Isso é um problema da lei brasileira. Então, um ponto importante que gostaria de sublinhar é que o conselho fiscal será tão competente para exercer sua função quanto o acionista for competente em indicá-lo e lutar por uma remuneração adequada para atrair os melhores talentos.