Corporations ressaltam necessidade de rever proteções aos acionistas no mercado brasileiro

O aumento recente no número de corporations no mercado brasileiro evidencia a necessidade de melhoria do ambiente regulatório no país para contemplar a dinâmica de funcionamento destas empresas. É o que defende Felipe Hanszmann, sócio do Vieira Rezende Advogados e professor da FGV, nesta entrevista exclusiva ao Panorama Amec.

Felipe Hanszmann, sócio do Vieira Rezende Advogados e professor da FGV. Foto: Divulgação.Para Felipe, ainda que a Lei das S.A. garanta importantes direitos aos minoritários, o texto reflete a realidade da época em que foi promulgada, quando todas as empresas tinham controlador. À medida que mais empresas adotam estruturas de capital disperso, surge a figura do acionista de referência, que não se encaixa na definição legal de controlador, mas, na prática, atua como tal em diversos momentos. Essa situação singular escapa à redação atual da lei sobre controle acionário, que na visão do especialista em temas societários, deveria ser atualizada.

Com a experiência de atuar na fundação do antigo Comitê de Aquisições e Fusões (CAF), entidade inspirada no Takeover Panel do Reino Unido, Felipe avalia que, além de uma atualização da Lei das S.A., seria benéfico para o mercado a regulação de percentuais de controle para fins de ofertas públicas de aquisição (OPAs) e a melhoria dos mecanismos de reparação de danos, como visto no chamado Projeto de Lei do Enforcement Privado. Os destaques da entrevista você confere abaixo:

Panorama Amec: Numa perspectiva histórica, as corporations são estruturas relativamente recentes no Brasil. Quais mudanças esse modelo tem gerado no mercado local?

Felipe Hanzmann: Quando falamos de corporations, a principal diferença é dispersão do capital. Não há nenhum acionista ou grupo que consiga eleger a maioria dos administradores. Na prática isso gera concentração de poder no conselho, porque não é fácil para os acionistas substituírem esses membros. E existe aquele ditado de que “o gado só engorda com os olhos do dono”. Quando existe dispersão de capital não tem ninguém com incentivo para “olhar o gado” todo dia. Porque a participação societária dos investidores nessas empresas é pequena, totalmente diferente de uma situação em que há acionista com mais de 50% do capital.

E o Brasil é um mercado historicamente marcado pela concentração de capital, não é mesmo?

Exatamente. O principal impacto é que no modelo com controle majoritário, os conflitos ocorrem entre majoritários e minoritários. Num cenário com dispersão de capital, você começa a ter mais conflitos entre management e acionistas, porque não tem um controlador. E tem o conceito de benefícios privados de controle. Normalmente quem vai poder usurpar benefícios é o majoritário, seja para usar o jatinho da companhia em benefício próprio, ou usurpar uma oportunidade de negócio que seria da empresa. Quando não há controlador e tem muito poder na mão do conselho, o board toma mais decisões. Inclusive com maior capacidade de usufruir desses benefícios. Se tenho expropriação da companhia em benefício de um administrador, é uma irregularidade que deve ser combatida. Mas quem vai correr atrás desse prejuízo? Se tem um majoritário ele vai querer processar o administrador, mas quando não tem um majoritário, é o próprio grupo de acionistas que vai atrás disso. Por outro lado, quando é o majoritário, os minoritários têm que ir atrás. E aí que entra a discussão do projeto de lei de responsabilidade dos investidores, do enforcement privado.

Como essa discussão de controle funciona em outros países?

Londres tem sistema de takeover regulation com um regulador específico, o Takeover Panel. Nasceu como autorregulação no fim dos anos 1960 e é um paradigma muito interessante para diferentes contextos. Ele tem uma regra muito importante, a rule 9, que obriga qualquer acionista que adquirir 30% da empresa a fazer uma oferta pela participação dos demais. No Brasil chamamos isso de OPA. A nossa Lei das S.A. tem um dispositivo que define regra de controle e a regra de tag along, sendo que ela parte do princípio que controle é 50% mais um. Isso é chave na regulação. A rule 9 parte de principio diferente. No Reino Unido, deter 30% de uma companhia em que ninguém tem mais de 50% significa que você já é controlador. A conclusão é que a definição de controle pra fins de proteção é de 30% do capital.

Considerando a nossa regulação, como o PL de enforcement contribui em termos de segurança regulatória?

Minha visão como cientista jurídico é de que nós deveríamos trabalhar nesse conceito de controle para melhorar a proteção aos minoritários. Nossa lei é muito boa porque ela cria obrigações do controlador. Mas ela é de 1976, então parte do princípio que a maioria das companhias tinha controlador. Só que, ao longo dos anos, muitos dos gatilhos para exercício destes direitos continuam não estando muito claros. Visivelmente você tem um problema no sistema de enforcement privado e corrigir essas falhas é bastante importante. O PL do enforcement bebeu na fonte de um estudo comissionado pelo Banco Mundial que tratou de alguns fatores que deveriam ser objeto de revisão. Entre eles, quitus de assembleia e formato do regime de legitimidade pra pleitear danos contra acionistas majoritários. Dito isso, nós deveríamos trabalhar a definição de controle. Hoje sou da opinião que vamos gerar valor se criarmos critério objetivo nessa linha. Gosto da premissa de 30% (do capital), que estabelecemos no Código de Regulação do CAF. Um outro caminho seria a própria CVM criar uma regra para uma oferta pública de aquisição.

Você acha que a reforma da Resolução 85 da CVM também vai nessa direção? 

Eu acho que sim. A minha sensação é que, independente de mexer na Lei 6.404, ou seja, mexer na definição do artigo 116, haveria espaço para que fosse criada uma obrigação de realização de OPA nas companhias em que não haja nenhum controlador definido para aquele acionista que atingisse um percentual de 30% do capital. Eu acho que isso poderia ser abarcado pela norma que substituir a Resolução 85.

Enquanto a regulação não avança, os mecanismos que buscam estabelecer equilíbrio entre os acionistas presentes na lei já seriam suficientes? Como você avalia sua eficácia?

Na verdade, esses mecanismos existem na nossa lei principalmente em relação ao controlador. Quando falamos de acionista de referência, se ele tem menos de 50% do capital votante, ele não se enquadra na definição de acionista controlador. Mas, na prática, ele acaba preponderando nas assembleias, porque você tem absenteísmo, por exemplo. É mais um indício de que a gente deveria mexer na nossa definição de controle, para que esses direitos fiquem mais claros.

Acho que podemos melhorar o nosso sistema de reparação de danos. Claro que quando você vai mexer num ponto sensível desses, há vários interesses envolvidos, várias classes de stakeholders que vão se manifestar e cada uma tem uma opinião. Mas, pensando como defensor do mercado de capitais, para mim é difícil fugir da conclusão de que ter um mercado de capitais sadio, com um nível de proteção mais elevado para os acionistas, vai ser benéfico para o sistema como um todo. O contra-argumento é falar que você não pode criar muita regulação senão você inibe inovação e gera um custo muito alto para as companhias abertas. Óbvio que esse cuidado tem que ser tomado, mas dar legitimidade para os acionistas buscarem reparação de danos contra o controlador por exercício de poder abusivo é uma ferramenta que pode ser benéfica.

Lá nos Estados Unidos você tem o que eles chamam de class action, que é diferente do que estamos falando, porque a class action é contra a companhia. Volto a dizer, eu acho a nossa lei boa porque ela estabelece deveres para o controlador e isso não existe nos Estados Unidos. Então, partindo dessa premissa, isso nos dá uma ferramenta para o nosso sistema de responsabilizar o controlador, porque, a maior crítica que se faz ao sistema de class action é justamente que eu tiro o dinheiro do bolso da companhia e coloco no do acionista. Tem gente que diz “vamos importar a class action dos Estados Unidos”. Não sei se é a melhor solução. Ela pode ser útil também, não estou dizendo que não tem espaço para ter isso. Mas eu acho que onde a gente conseguiria gerar mais valor seria dando mais efetividade ao nosso regime de reparação de danos causados pelo controlador aos minoritários. Porque a nossa lei já tem essa proteção, se conseguirmos dar efetividade a isso seria a grande vitória, talvez, do nosso sistema.