Entrevista Henrique Machado: Entendimentos recentes da CVM podem comprometer “segurança jurídica”

Print Friendly, PDF & Email

Em entrevista exclusiva ao Panorama Amec, o ex-Diretor da CVM e ex-Secretário do Conselho Monetário Nacional, Henrique Machado, compartilha sua visão sobre temas como conflito de interesses, proteção de investidores e perspectivas para o mercado de capitais.

O atual sócio do escritório Warde Advogados também avalia o modelo de enforcement da CVM e comenta casos icônicos, como Petrobrás e Linx-Stone. “É relevante constatar que um caso como o da Petrobras, em grande parte, não teve o mérito apreciado porque as infrações foram consideradas prescritas”, disse em trecho da entrevista.

Ele considera que a falta de uma linha jurisprudencial mais clara sobre temas polêmicos pode trazer insegurança jurídica. “[Em casos de conflito de interesse] O regulador vinha seguindo a tendência nos últimos anos de reconhecer o conflito formal. No julgamento do caso Linx-Stone, a CVM deixou uma grande dúvida sobre qual passa a ser o seu entendimento.”, avalia.

Leia a entrevista na íntegra a seguir:

Henrique Machado, ex-diretor da CVM. Foto: Valor / Agência O Globo.

Qual a sua avaliação sobre a evolução do mercado de capitais nos últimos anos?

Independentemente do que já fizemos, a sensação é de que ainda há muito a ser feito. Considerando os avanços no marco legal e os fundamentos macroeconômicos, o mercado de capitais registrou um amplo crescimento. Isso pode ser verificado pelo número de investimentos, novas ofertas públicas, pela redução do custo de captação, pelo crescimento da indústria de fundos, intermediação e distribuição, tudo isso cresceu. E até mesmo a pauta ESG, também a par de todas as dificuldades, teve um forte impulso. A inovação avançou muito, seja por ação dos reguladores ou dos agentes do mercado. A inovação e a concorrência também aumentaram, e isso tudo é positivo.

E isso tudo em meio ao aumento do número de investidores, não é mesmo?

Depois de um período como os últimos anos, é possível imaginar que se criou uma cultura de investimentos. As pessoas estão investindo mais em Bolsa. Saímos de alguns milhares para alguns milhões de investidores, que estão começando a investir no mercado de capitais, seja em ações de companhias, cotas de fundo e ou em dívida privada. Isso é um legado do período mais recente. O risco aqui é que uma parcela desses novos investidores se sinta lesada e não seja estimulada a continuar investindo nesses instrumentos.

Não existe uma sensação de que os problemas, as deficiências de governança e os conflitos de interesses também aumentaram?

São as dores do crescimento do mercado. O mercado cresce, e proporcionalmente também aumentam as irregularidades, os casos fraudulentos. Deficiências informacionais se sobressaem prejudicando investidores. Há grande dificuldade de supervisão de criptoativos. Cresceu o número de operações de conteúdo irregular. E a CVM não teve o mesmo ritmo de crescimento para acompanhar o mercado, não acompanhou o aumento das operações, de ofertas, de agentes de mercado… Não teve reforço em sua estrutura para fiscalizar o mercado, nem avanço tecnológico nem capacitação condizente com a nova feição do mercado de capitais.

Poderia explicar melhor as limitações da CVM em termos de infraestrutura?

Em qualquer lugar do mundo, não é de se esperar que o órgão fiscalizador seja a entidade com maior número de funcionários e o maior avanço tecnológico. Mas esperamos que a CVM tenha uma estrutura mínima adequada de recursos materiais e humanos, com recursos tecnológicos e de treinamento de seus servidores. É necessária uma quantidade de pessoal para acompanhar um mercado que multiplicou de tamanho e sofisticação, mas, no entanto, a CVM diminuiu.

Qual a sua avaliação sobre o desenvolvimento da supervisão prudencial da CVM em comparação com outros reguladores do Sistema Financeiro?

Quando falamos de supervisão prudencial do Banco Central ou da Previc, pensa-se logo em colchão de liquidez para determinados ativos, regimes contracíclicos ou intervenção em uma instituição financeira ou um fundo de pensão. Esses instrumentos a CVM não tem. Mas a CVM pode atuar preventivamente através de alguns mecanismos. A autarquia faz isso na regulamentação ou quando determina uma stop order, quando indica a suspensão de uma determinada atividade que esteja afetando o mercado. Tem outra ação que é a interrupção do prazo de assembleia, quando se percebe uma ilegalidade antes da realização da assembleia. A CVM tem esses institutos tradicionais. Mas, a meu ver, considerando o arcabouço jurídico, a estrutura administrativa e a cultura organizacional, é bastante difícil que a CVM desenvolva esse papel prudencial. Acho que a atuação prudencial não é a vocação histórica da CVM.

E tratando de temas sempre atuais, como você analisa a atuação da CVM nos casos de conflitos de interesse?

Falta segurança jurídica, o que provavelmente só será solucionado com alteração da lei. Construí uma visão alinhada ao conflito formal, de modo que deve ser reconhecido o impedimento de voto quando interesses relevantes se contrapõe. O conflito formal tem caráter ex-ante, porque precede a deliberação. É prudencial também, porque vem antes da assembleia e da concretização da possível ilegalidade.

Por que o conflito de interesse deve ser formal?

Há três conjuntos de razões muito claras. Há motivos jurídicos. O artigo 115 é bastante evidente quanto ao impedimento de voto. Há razões econômicas, fundadas na busca de incentivos para o alinhamento de interesses e na assimetria informacional entre controlador, administração e minoritários. O outro grupo de razões é político. À medida que o enforcement público ou privado é deficiente, os investidores minoritários têm dificuldade de fazer valer seus direitos, tornando difícil imaginar a solução dada pela hipótese do conflito material. Em um contexto em que os instrumentos de enforcement públicos e privados são reduzidos, não me parece condizente a permissão do voto conflitado para que só depois haja uma avaliação, em uma possível fiscalização futura ou em uma difícil discussão judicial.

Poderia citar exemplos?

Tivemos um caso icônico de definição entre conflito material e formal que a Amec acompanhou. A CVM vinha seguindo a tendência nos últimos anos de reconhecer o conflito formal. No julgamento sobre o caso Linx-Stone, a Autarquia deixou uma grande dúvida sobre seu entendimento. Meu voto no processo foi pelo conflito formal. Houve outro voto pelo conflito material. E outros dois votos caracterizaram um terceiro caminho. E por se tratar de um caso bastante representativo de conflito, também trouxe à tona novamente a discussão sobre possível mudança de entendimento da CVM daqui para frente.

Isso cria uma insegurança no mercado, não é mesmo?

Para vários investidores institucionais, a decisão trouxe insegurança jurídica. Cria no mínimo uma expectativa para definição de entendimento da CVM. O mercado aguarda novas manifestações.

E você participou de outros casos com grande visibilidade. Poderia comentar sua visão sobre eles?

Há casos que podem ser chamados de icônicos por conta da maior visibilidade, do maior acompanhamento pela sociedade, pelos investidores e pelo mercado em geral. O resultado desses julgamentos acaba impactando, seja em benefício ou em prejuízo, para a própria credibilidade do mercado. Isso não significa que a decisão será guiada pela opinião pública, mas vejo que alguns problemas foram identificados em julgamentos mais recentes. É relevante constatar que um caso como o da Petrobras, em grande parte, não teve o mérito apreciado porque as infrações foram consideradas prescritas. Estamos falando do maior caso de descoberta de corrupção da história do país [Petrobras], no qual as autoridades policiais foram efetivas em levantar os fatos. Mas o caso já estava prescrito quando a CVM começou a analisar. Acho que precisamos rever a regra de prescrição para episódios dessa natureza.

E como avalia as perspectivas para o mercado de capitais brasileiro?

O cenário base é positivo, ainda que inclua turbulências e um dever de constante vigilância, como disse o Roberto [Teixeira da Costa] em entrevista recente [edição n. 47 do Panorama Amec]. Contamos com uma ampla modernização dos agentes, dos emissores do mercado, dos ativos e valores mobiliários. Temos uma pauta ambiental que vem crescendo constantemente com a melhoria da postura dos próprios investidores, criação de títulos verdes, evolução da taxonomia internacional… Precisamos falar mais sobre valores sociais no mercado e nas companhias.

No aspecto jurídico, há um claro movimento em direção à desburocratização, à melhoria do ambiente de negócios, ao aperfeiçoamento de velhas soluções e à criação de novas figuras. O debate sobre o voto plural, por exemplo, evoluiu e parece ter alcançado maturidade. Vejo também como positivas as figuras da sociedade anônima simplificada e da sociedade anônima do futebol, além do trabalho profundo de aprimoramento de alguns marcos regulatórios que vem sendo conduzido pela CVM e deve gerar frutos em breve.

Finalmente, como você vê a recente criação do voto plural?

Foi um tema muito impulsionado dentro do debate das razões pelas quais o mercado brasileiro teria menor poder atrativo, o que faz sentido, mas nem de longe explica os motivos de uma companhia procurar, por exemplo, o mercado americano para abrir capital.

De toda forma, o tema continuou em constante debate nos últimos anos e me parece haver atualmente algum consenso de que o voto plural faz sentido em algumas circunstâncias, para algumas companhias. A proposta aprovada é um bom começo. Em alguns aspectos ela é efetivamente restritiva, mas é sem dúvida um aprimoramento.