Entrevista Mauro Cunha: Precisamos de uma reflexão muito séria sobre o enforcement no mercado de capitais

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Em análise crítica, o ex-Presidente da Amec, Mauro Rodrigues da Cunha, aponta a necessidade de uma reflexão sobre a estrutura de enforcement no mercado brasileiro. Atuando hoje como conselheiro de empresas e tendo ocupado a presidência da associação de 2012 a 2019, ele avalia os principais desafios do nos próximos anos, em entrevista exclusiva ao Panorama Amec.

“O mercado precisa de regras para funcionar, que sejam simples, justas e válidas para todos. Se você deixa corroer essas regras pelas beiradas, vai matando lentamente o mercado de capitais.”, comenta Cunha. Com ampla experiência no setor, tendo ocupado ainda a presidência do Conselho do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), entre 2008 a 2010, o executivo avalia os problemas da atual onda da IPOs (ofertas iniciais de ações) com a preparação inadequada das empresas para a abertura de capital. Confira a entrevista a seguir:

MAURO RODRIGUES DA CUNHA
Mauro Cunha, ex-Presidente da Amec. Foto: Divulgação.

Quais seriam as principais perspectivas e desafios para o mercado de capitais brasileiro em 2021?

Dividiria os principais desafios em quatro pontos. O primeiro é incentivar que os investidores atuem como donos das companhias e cumpram seu papel. Segundo, que essa nova onda de IPOs tenha maior cuidado e reflexão sobre a sua governança. O terceiro ponto é que a agenda de ESG, seja uma agenda real e não apenas de marketing. E o quarto ponto, é o problema da eficácia em nosso mercado dos direitos dos acionistas.

Há críticas recorrentes sobre a estrutura de enforcement no mercado de capitais brasileiro. Qual sua visão?

O mercado precisa de regras para funcionar, que sejam simples, justas e válidas para todos. Se você deixa corroer essas regras pelas beiradas, vai matando lentamente o mercado de capitais. Vimos muitas vezes esse movimento e a Amec foi, muitas vezes, o único bastião que se levantou a voz contra isso. Não só como atuação própria, mas também para dar eco ao clamor para que os demais players cumpram seus deveres. Existe o dever dos gatekeepers de preservar o mercado como o bem maior em que as pessoas possam confiar, que irão aplicar suas reservas e que não serão roubadas. Infelizmente esse papel está muito prejudicado.

E como deveria funcionar essa estrutura de gatekeepers?

Quando pensamos nesse poder, pensamos logo em CVM, mas que não deve ser o único.  Vemos problemas no regulador em sua capacidade de dar eficácia às regras, e acho que isso tem piorado nos últimos meses. Sobre o papel das bolsas, vemos um movimento de atração de maior número de empresas. E a adesão da B3 à ideia de Voto Plural é um sintoma disso. Temos o Ministério Público que, por força de lei, deveria também defender o mercado de capitais. A Justiça também não tem atuado neste sentido. Então, temos problemas generalizados.

Sobre a atuação recente da CVM em conflitos e problemas em operações estruturadas recentes, qual deveria ser o caminho?

A CVM deveria priorizar aquilo que foi o slogan dela durante muito tempo, que é proteger quem investe no futuro do Brasil. O que vimos em decisões recentes foi a proteção dos agentes de mercado. Não há um histórico de responsabilização de administradores, mesmo em casos de escândalos de repercussão mundial, como foi o caso da Petrobras. E quem paga a conta é o investidor. Então, acho que é necessária uma reflexão filosófica do papel do regulador, do ônus da prova e de uma visão excessivamente formalista e garantista que leva à impunidade.

Você citou há pouco o problema de se apoiar a ideia de Voto Plural. Poderia explicar sua posição em relação ao tema?

A Amec sempre se posicionou em defesa do “one share, one vote”, no contexto das empresas abertas, esse sem dúvida é o sistema mais adequado. Acho que o Voto Plural pode ser justificado no mercado privado, onde há players sofisticados que sabem se defender. Se começarmos a criar incentivos tortos, a conta será paga lá na frente. Os problemas nessas estruturas são explicados pela teoria dos jogos. Todos têm o incentivo para jogar de acordo às regras, até a última rodada. Na última rodada, o incentivo é para roubar. E no mercado de capitais, a última rodada pode ser, perfeitamente, um fechamento de capital, uma OPA, quando ocorre uma transferência de valor muito grande, e o jogo acaba. O controlador não estará preocupado com o que irão achar dele no mercado de capitais.

Acredita que os problemas do passado, de preparação inadequada das empresas, tendem a se repetir em momentos de euforia de IPOs como o que vimos em 2020?

Acredito que sim. Veja a atuação dos bancos de investimentos, que deveriam impor um selo de qualidade sobre os ativos que eles trazem ao mercado, mas não o fazem. Na recente onda de IPOs, verificamos muitos dos mesmos erros cometidos no passado, de empresas que organizam sua governança aos 44 minutos do segundo tempo para realizar a abertura de capital. O mercado liga a maquininha, super pressionados para comprar ativos, querendo encontrar um ativo que terá uma super valorização de imediato. Os bancos ficam incentivados a fazer negócios. E as empresas enxergam um cheque que nunca viram antes. Já vimos esse filme antes.

Em comparação com a onda anterior de IPOs, como avaliar o movimente atual?

Na onda de 2006 e 2007, várias empresas vieram ao mercado e não estavam prontas. A maior parte delas destruiu valor. Por exemplo, no setor de construção civil, se tomarmos a totalidade dos valores que foram captados durante aquela onda e os prejuízos verificados depois no mercado, o valor foi todo destruído. É simples, essas empresas não estavam prontas para receber um capital desse tipo, não tinham os controles internos, não tinham os projetos, não tinham escala e não tinham governança.

Você percebe problemas também na formação dos conselhos?

Claro, os bancos de investimentos chegam com um kit de documentos. As empresas formavam um conselho com duas ou três pessoas conhecidas do mercado para se fazer o IPO. No mês passado recebi dois convites para integrar conselhos de empresas que pretendem abrir capital. Perguntei quando seria a abertura de capital e uma delas me respondeu, que seria na próxima semana. Na outra, a resposta foi parecida. Disse “não, obrigado”. Se você é convidado para se juntar ao board a uma semana do IPO, a empresa não está querendo sua contribuição de governança. Está querendo a sua placa.

Isso ocorre de maneira generalizada no mercado?

A qualidade de formação dos conselhos tem avançado em algumas empresas, mas certamente não tem avançado na maioria das empresas que estão fazendo IPO. Isso me assusta pela qualidade das empresas que estão vindo por aí. Se começarmos a ter notícias negativas em excesso, haverá maculação da credibilidade do mercado de capitais. Se tivermos notícias negativas em excesso, podemos prejudicar o mercado como um todo.

Como deveria ser realizado o processo de preparação para o IPO?

O processo atabalhoado para realizar o IPO para aproveitar a janela, elimina a reflexão essencial que a empresa deve fazer para mudar o seu modelo societário. Deixar o modelo de empresa fechada para o modelo societário, é uma mudança radical, é como entrar na puberdade. Tem uma consequência cultural muito grande, mas não se dão conta disso. Tem uma série de problemas que irão cair no colo da Amec.

Um dos temas recorrentes nas discussões pós-pandemia é ascensão das questões ESG. Como você tudo isso?

É importante lembrar que a Amec trata de ESG desde sua fundação. Ficamos roucos de tanto falar nesse assunto. Sempre defendemos a premissa que sem o “G”, o “E” e o “S” são marketing. A governança é uma premissa para se falar seriamente em sustentabilidade e meio ambiente. É triste quando vemos a agenda pular direto para o meio ambiente, levando a um marketing. Isso vale tanto para as empresas quanto para os investidores. A primeira tarefa do investidor é identificar as empresas que estão falando de sustentabilidade, sem nunca antes ter falado do “G”.

Por que acredita que a governança é a premissa básica do ESG?

Isso significa estruturar a sua governança de maneira adequada e dar transparência sobre ela. Qual empresa brasileira divulga avaliações sobre seu conselho de administração? Nenhuma. Os investidores votam sem saber se o conselheiro foi bom ou não. Mais uma vez, falar com seriedade em uma agenda ESG, é preciso praticar, aquela história do “walk the talk”. Isso não acontece na maioria das empresas e na maioria dos investidores.

Que atitude você indicaria aos investidores para avançar nas questões ESG?

O investidor que fala de ESG e ainda não aderiu ao Código de Stewardship, ele deve estar fazendo greenwashing. A adesão é gratuita e os princípios que estão por trás do código são absolutamente essenciais para que o investidor exerça seu dever fiduciário e mostre isso tanto para as empresas quanto para seus clientes. Sua adesão aponta que ele tem compreensão desse dever, que permite o exercício do ESG.