Tsunami

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Mercados periféricos como o Brasil muitas vezes se vêm atropelados por tendências mundiais que passam longe dos radares dos participantes locais. Assim como um tsunami, cujo surgimento no horizonte significa ser tarde demais para fazer algo a respeito, essas tendências trazem consequências para as quais podemos não estar preparados.

É o caso da discussão em andamento nos mercados centrais a respeito da exclusão de ações sem direito a voto dos principais índices de mercado.

O debate sobre a regra “one share, one vote” é um dos mais recorrentes nos círculos de governança. De um lado estão aqueles que enxergam neste sistema aquele que melhor conduz a boas práticas de governança corporativa, tendo em vista o perfeito alinhamento de interesses entre poder político e contribuição do capital. Afinal, o voto nada mais é do que a contrapartida dada ao acionista pelo fato de ele contribuir com capital sem ter direito a qualquer retorno certo (ao contrário dos credores ou empregados, por exemplo, cuja remuneração é estabelecida em contrato). Os acionistas são os residual claimants, ou seja, ficam apenas com o que “sobra” depois que a empresa paga todas as suas contas. Por isso, possuem o poder de voto como instrumento de controle para garantir o retorno do seu capital.

Do outro lado estão aqueles que defendem a “liberdade de mercado”, no sentido de que as empresas devem ter à sua disposição um amplo leque de títulos a serem emitidos conforme suas necessidades/possibilidades. Argumentam, também, que os investidores financeiros tipicamente não se interessam por poder político, restando satisfeitos com os direitos econômicos dos ativos que compram. Assim, seria justificável que se atendesse a demanda de cada “clientela”, goste ela de votos ou de exposição econômica. Por fim, argumentam que as estruturas multiclasses de ações permitem a expansão da companhia com a manutenção do controle nas mãos dos fundadores, que teriam maior capacidade de agregar valor e preservar a cultura que leva ao sucesso.

No primeiro grupo normalmente são encontrados os teóricos da governança e os investidores institucionais. No segundo concentram-se algumas empresas (normalmente com controle definido), banqueiros, advogados e outros intermediários.

No Brasil, a experiência é eloquente com relação a essa questão – embora muitas vezes façamos questão de ignorá-la. Desenvolvemos nosso mercado de capitais dentro de um modelo patrimonialista-estatal, no qual a manutenção do controle acionário era perseguida a ferro e fogo. Não obstante, é importante recordar a lição do historiador Ney Carvalho, em palestra no Seminário da Amec em 2012 (neste link): o modelo patrimonialista-estatal é uma herança de Getúlio Vargas, e não algo intrinsecamente cultural do Brasil.

Não obstante, nosso mercado de capitais se desenvolveu baseado nas ações preferenciais, sem direito a voto, que poderiam representar 2/3 do capital social das empresas. Somando-se a isso as estruturas piramidais, muitas vezes financiadas por dinheiro do contribuinte, nos tornamos um exemplo mundial da tal distorção de incentivos. Sem surpresas, vivemos por muito tempo com um protomercado muito inferior àquilo que o Brasil necessita para financiar seu desenvolvimento. Os abusos contra acionistas minoritários eram escandalosos – mas, repita-se, não surpreendentes, dado que os controladores muitas vezes tinham pouco ou nenhum skin in the game (aliás, aguardamos ansiosamente o livro homônimo de Nassim Taleb). A privatização nos anos 90 apenas agravou esse quadro.

Na virada do milênio parecia que havíamos aprendido a lição. A Lei 10.303 reduziu o percentual máximo de ações preferenciais para metade do capital, e o Novo Mercado firmou-se como praticamente a única alternativa viável para abertura de capital, seguindo a regra do uma ação, um voto.

Ainda assim, volta e meia os especialistas de plantão se levantam com a bandeira das estruturas “criativas” de controle, que mais cedo ou mais tarde cobram seu preço em grandes fracassos corporativas. Trombeteiam que empresas de enorme sucesso como Berkshire Hathaway, Google a Facebook possuem diversas classes de ações – omitindo que são as exceções que confirmam a regra. Em outras palavras, empresas que tiveram sucesso não por causa da sua estrutura de controle, mas talvez apesar ela. Estudo do ISS e do IRRC (disponível aqui) deixa claro que na média as empresas com diversas classes de ações performam pior e são pior precificadas pelo mercado do que aquelas que seguem o one share, one vote. Na mesma conclusão chegou o estudo encomendado pela Amec e CFA Institute, analisando o mercado brasileiro (disponível aqui). Para cada Google há um Uber.

A exuberância do mercado americano de alta tecnologia, alimentado pela taxa de juros próxima de zero nos últimos 10 anos alimenta os argumentos para a aceitação de estruturas criativas.

Mas, curiosamente tais especialistas não focam na reação de um dos atores mais importantes do mercado de capitais: os investidores institucionais. Esses que, no fim das contas são os compradores finais desses ativos já vinham reclamando há muito tempo das distorções criadas por estruturas multiclasses. Críticos simplistas diziam: “ah, basta não comprar esses ativos!”. Nada mais falso. Dada a tendência mundial de aumento dos investimentos passivos ou indexados, os investidores institucionais eram obrigados a comprar títulos mobiliários que não gostavam, unicamente porque eles seriam partes importantes dos índices de ações que precisam seguir.

O IPO do Snapchat foi a gota d’água. Ao divergir do procedimento padrão de conceder direitos de votos restritos – mas algum direito – aos investidores, e vender ações sem NENHUM direito a voto, o Snapchat levou a uma reação global dos fundos de pensão e grandes gestores. Vários deles, e as associações que os representam, começaram a pressionar os três grandes provedores de índices – FT/Russell, S&P/Dow Jones e MSCI – para que excluíssem de seus benchmarks tais ativos exóticos e distorcivos. Imediatamente, os três provedores abriram consultas públicas para considerar a solicitação. É esse tsunami que começa a mostrar sua cara.

S&P e FT/Russell anunciaram suas decisões em julho de 2017, e optaram por caminhos muito diferentes.

A S&P foi no sentido de não mais incluir empresas que possuam mais do que uma classe de ações. Ou seja, é um critério absoluto, que não entra no mérito do percentual de votos disponíveis ao mercado – se tem mais do que uma classe, está fora. Contudo, há duas restrições importantes. Em primeiro lugar, os componentes atuais do índice podem permanecer (grandfathering). Além disso, a decisão se aplica unicamente ao mercado norte-americano, através do índice S&P 1500 e seus subcomponentes (incluindo o S&P 500). Em outras palavras, o impacto inicial é nulo, mas fica claro que novas empresas americanas que não sigam o one share, one vote não serão incluídas no índice.

É uma pena que a decisão da S&P não tenha sido estendida para outros mercados, onde esses problemas são ainda mais prevalentes. Resta a expectativa que, ao longo do tempo, a S&P uniformize sua abordagem em relação aos diferentes mercados.

Já a FT/Russell criou o seguinte critério: para ser incluída no índice uma empresa precisa ter pelo menos 5% do seu poder de voto dentre as ações em circulação. Ao contrário da S&P, a decisão de aplica a todos os índices de mercados, incluindo, portanto, Europa e alguns países asiáticos, e aos seus índices globais (GEIS).

Não obstante sua aplicabilidade global, o parâmetro escolhido pela FT/Russell foi tão baixo que afeta na prática poucas empresas – e nenhuma empresa brasileira. O parâmetro de 5% foi escolhido aparentemente com o objetivo de causar o menor impacto possível nos constituintes atuais do índice e, ao mesmo tempo, atender à reação causada pelo Snap e seus 0% de poder de voto no free float. Outras empresas excluídas dos índices globais da Russell incluem Dell, Clear Channel, Federated Investors e Laureate.

Mas, talvez o processo mais diligente e interessante seja o da MSCI. Ao contrário de suas concorrentes, a empresa fez duas rodadas de consultas públicas, sendo que a segunda está em aberto até o dia 31 de maio de 2018. Na última versão da consulta, a MSCI incluiu um paper detalhado (disponível aqui), explicando sua abordagem. Ela endereça dois dos principais problemas de suas concorrentes. Em primeiro lugar, a aplicabilidade é global, sem criar padrões diferentes para mercados diferentes. Em segundo lugar, ao invés de criar uma “linha na areia” (termo utilizado pela própria FT/Russell), a MSCI propõe ajustar o peso dos componentes do índice de acordo com o poder de voto do free float. Neste sentido, se uma empresa segue a regra do one share, one vote, 100% do seu free float são utilizados para sua ponderação nos índices. Caso ela possua classes diferentes de ações, cada uma delas tem seu poder de voto acrescentado como ponderação adicional, reduzindo o percentual do valor de mercado do free float elegível para o peso da empresa no índice. No limite (por exemplo, no caso do Snap), se o poder de voto do free float é zero, o peso no índice é zero.

Parece complicado – e é. A existência de casos especiais, como golden shares, limites de voto a estrangeiros, e voto condicional dificultam ainda mais a análise. Mas, a leitura do paper publicado demonstra um elevado grau de diligência e rigor técnico na abordagem da MSCI. E ao contrário de suas congêneres, a proposta traz impactos significativos para os componentes dos principais índices.

No caso do MSCI ACWI (principal índice global da empresa), por exemplo, estima-se que 253 empresas, e um universo de 2.493 (10%) serão impactados. No caso de mercados emergentes, esse percentual é de 13%. Algumas empresas terão impactos pequenos, enquanto outras serão completamente excluídas. As ações do Facebook, por exemplo, que representam 0,95% do índice global, teriam seu peso reduzido em 62%[1]. Já no caso de Berkshire Hathaway (0,53% do índice), o impacto seria de 16%.

O impacto para as empresas brasileiras é, naturalmente, de especial interesse para os investidores locais. A ação brasileira com maior peso no MSCI ACWI é Itaú PN. A queda da sua participação no índice, segundo a simulação efetuada, seria de 82%, antes do impacto sofrido por outras empresas. Já o Pão de Açúcar (CBD) seria excluído dos índices MSCI, pois não possui ações com direito a voto em circulação.

Embora a análise precise ser atualizada (foi feita antes da unificação de classes de Suzano e Vale, por exemplo), a MSCI estima que 2 empresas brasileiras seriam excluídas do índice (incluindo Suzano, o que não mais acontecerá) e outras 16 teriam seu peso reduzido. O Brasil seria o país mais afetado pelas mudanças: seu peso reduzido no MSCI EM (índice de mercados emergentes) dos atuais 7,3% para 5,7% – a maior dentre todos os componentes do índice.

Essa análise demonstra o grau de distorção do nosso mercado de capitais, fruto da equivocada visão varguista colocada no início deste artigo, que cobrará seu preço quando a nova metodologia do MSCI for implementada. E isso acontece mesmo depois do sucesso do Novo Mercado, que reduziu nossa dependência de ações preferenciais.

Nos faz refletir, também, sobre o dano que nos autoinflingimos – e aqui incluímos empresas, investidores, bancos, reguladores e bolsa – ao termos permitido um passo gigantesco na direção errada através das ações “superpreferenciais”.

Mas, por outro lado a análise demonstra, também, o caminho inequívoco que precisamos trilhar se formos construir um mercado de capitais mais saudável e reconhecido globalmente: não é seguindo modismos setoriais ou mantras de intermediários que aumentaremos o interesse dos investidores globais pelas ações brasileiras. Pelo contrário, a aderência cada vez maior ao princípio de one share, one vote deve ser a pedra de toque de todos os participantes do mercado supracitados para recuperarmos a relevância do nosso mercado no ambiente global.

 

[1] Queda no valor de mercado de referência para a ponderação no índice. A variação no peso pode ser diferente tendo em vista as alterações nas demais companhias que compõem o índice.